Duas horas depois do início oficial Guilherme determinou o fim do encontro. Não tinha falado mais nada, só ouvido brigas de família, problemas banais e alguns problemas sérios. Queria ficar e fazer algumas perguntas para o Guilherme, mas queria acompanhar o resto do Círculo e descer. Quando boa parte do Círculo já estava no corredor viu Paula acenando com a cabeça, indicando a saída e a acompanhou.
— Alguém desenhou um símbolo de magia negra no banheiro feminino. — Paula sussurrava para a garota de cabelos curtos quando Roberta se aproximou.
— Tipo a loira da privada? — ela perguntou.
— Pior. — Roberta completou conpiratória — É uma Qliphot, a árvore cabalística invertida. Se a Cabala reúne os princípios da vida e criação a Qliphot reúne os princípios da morte e destruição. — na verdade não tinha certeza do que estava dizendo. Tinha lido uma ou duas páginas da internet sobre a Qliphot e há mais de um ano. Era quase surpreendente que a reconhecesse.
— Tem uma na minha sala. — o rapaz magro que se chamava Artur respondeu.
— Três? — Roberta perguntou espantada.
— Se a minha é a terceira — Artur perguntou — onde é a segunda?
— Tem uma no banheiro daqui e a Paula viu outro no do pátio. — Roberta enumerou. — Estamos descendo para conferir se o do pátio está lá.
— Onde é a sua sala? — Roberta perguntou.
— No andar de baixo. — Artur respondeu — Mas o teatro está ensaiando lá.
— Por que essas coisas estão no CP? — a garota de cabelos curtos perguntou — É algum tipo de ritual?
— Pode ser. — Artur respondeu — Quem sabe uma invocação de Belial ou Asmodeus.
— Credo! — Paula respondeu Artur de pronto fazendo um sinal da cruz. Paula usava um crucifixo de madeira ostensivo, impossível de não reparar — Não sabia que você também gostava dessas coisas.
— Tem algo que o Artur não goste? — a grota de cabelos curtos perguntou irônica.
— Claro que não. — ele respondeu jocoso — Se até de você eu gosto, Pâmela.
A garota de cabelos curtos, Pâmela, fingia raiva e dava tapas de leve em Artur enquanto este procurava fugir. Estarem todos na escada dificultava tudo, claro. Artur se escondia de Pâmela atrás de Roberta quando interrompeu a brincadeira apontando para o topo do vão da escada. — Péra. Olha lá.
Junto do alçapão que provavelmente levava para a caixa d'água, uma forma composta de três espirais desenhada na parede.
— Um tríscele. — Roberta anunciou para a audiência que apesar disso continuava na mesma.
— Outro símbolo? — O rapaz com a cicatriz no lábio, Denis, perguntou.
— Esse é celta. — Artur explicou — O três é sagrado para os celtas.
— Você estuda magia? — Roberta perguntou para Artur, se desvencilhando de uma das mãos dele que ainda estava sobre o ombro dela.
— Eu estudo tudo, menos o que cai nas provas. — Ele respondeu entre a empáfia e o ridículo — Sou sua enciclopédia de notas de rodapé inúteis e aleatórias.
— Isso deve ser legal. — Roberta comentou sem conseguir achar nenhuma resposta adequada.
— Menos do que imagina. — ele respondeu com um fio de voz, antes de mudar de assunto. — Quem me dá pepé para eu tirar uma foto disso?
Todos se entreolharam em silêncio e aos poucos todos os olhos se fixaram na pessoa que aprecia mais forte no Círculo. Um rapaz mais velho, talvez já no terceiro ano, que não tinha dito uma palavra desde a chegada de Roberta.
— Marcus — Artur sacudia o celular — É uma decisão unânime. Você é o mais forte e eu o mais leve.
Ele deu de ombros como se concordasse a contragosto e foi para baixo dos degraus de ferro embutidos na parede sob o alçapão, altos demais para serem alcançados sem ajuda, e posicionou as mãos esperando por Artur, ainda sem dizer uma palavra.
Artur não perdeu tempo e com a ajuda de Marcus alcançou sem dificuldade os degraus. Já estava terminando de subi-los quando Guilherme perguntou do topo da escada — Ninguém está fazendo nada errado aqui, não é?
— Claro que não — Paula foi a primeira a recuperar a voz. — Ele só quer tirar uma foto da... “tricele” que alguém desenhou lá em cima.
— Por que alguém desenharia uma tríscele ali? — Guilherme perguntou ao perceber o símbolo, enquanto Artur terminava de subir a escada e tirava a foto. — De qualquer modo, você pensou em como desceria daí sem uma escada?
— Pulando? — Artur perguntou, com genuína dúvida na voz.
— Pular de mais de dois metros de altura em uma escada. — Guilherme respondeu com ironia enquanto entregava sua pasta para Paula. — Tornozelo torcido na melhor das hipóteses, pescoço quebrado na pior. — Afastou Marcus de debaixo do alçapão com um gesto — Desça o mais possível, tente ficar com as mãos no último degrau e os pés na parede.
Não tinham parado para pensar nos riscos da atitude de Artur. Roberta se sentia mais nervosa a cada segundo enquanto Artur descia para os braços abertos de Guilherme, até que, no penúltimo degrau este alcançou o quadril de Artur e anunciou “Pode largar”. Depois de hesitar um momento ele obedeceu e com um barulho surdo pousou, amortecido, mas ainda pesado no patamar entre os dois lances de escada.
— Não façam mais coisas perigosas assim. — Guilherme disse enquanto subia para pegar a pasta com Paula. — Não quero ir a nenhum funeral. E deve ter uma câmera com zoom em algum lugar dessa escola.
Enquanto ele se despedia Roberta começou a se sentir muito estúpida. Não era um risco muito grande, mas realmente podiam ter procurado uma câmera com zoom ou uma escada. Quando Guilherme já começava a descer o segundo lance de escada Artur murmurou um “Obrigado” ambíguo.
— Só não faz isso de novo. — Guilherme respondeu acenando enquanto sumia escada abaixo, deixando seus alunos ainda em silêncio.
— A foto ficou boa? — Pâmela foi a primeira a falar algo.
— Claro. — Artur respondeu. — Venham ver.
A foto realmente tinha ficado boa. Nítida e bem enquadrada, mas Roberta não pôde deixar de reparar que a mão de Artur tremia enquanto ele segurava o telefone às vistas de todos.

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O Círculo
Misteri / ThrillerRoberta tinha uma vida antes de tudo normal antes do pai se preso. Com a mãe se afundando a cada dia mais em indiferença e mutismo se mudou da pequena Icém para a vizinha e imensa São José do Rio Preto, onde ninguém parece interessado em lhe acolher...