Cota de malha

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Vai, se prepara! Tá preparado?

Pode ir, pode ir, tô preparado, vai!

A punhalada foi rápida e bem direcionada, atingindo as costelas do lado esquerdo. Os anéis de ferro da cota de malha deslizaram para os lados sobre a força do golpe e o punhal entrou até a metade no colete de couro do aprendiz mais velho, que soltou um "uuf!", espantado.

Minha nossa, Carlinhos! — gritou o menino mais novo com voz esganiçada quando um jato vermelho fluiu sobre sua mão e escorreu pela recém forjada cota que Carlinhos fizera mais cedo para um senhor qualquer.

"Certifique-se de que seja um trabalho impecável", bradou o senhor ao seu escudeiro, que repetiu as ordens no mesmo tom ao ferreiro que, por sua vez, pediu aos garotos que fizessem logo o maldito trabalho. Carlinhos ficou empolgadíssimo com a oportunidade de fazer ele próprio uma cota de malha. Seria seu primeiro grande trabalho e queria garantir que tinha feito o melhor quando entregou o punhal do ferreiro ao garoto mais novo e pediu que o apunhalasse. Nenhum dos dois esperava que a lâmina fosse capaz de perfurar a cota de malha tão facilmente.

Aaai — gemeu Carlinhos, deslizando para o chão com a mão no ferimento — chama o mestre, chama o mestre! — foi tudo que conseguiu sussurrar antes de engasgar no próprio sangue. Seu rosto empalideceu como um dente de alho.

O menino mais novo deixou o punhal cair e saiu correndo. Quando retornou à forja, com o ferreiro furioso em seus calcanhares, o aprendiz mais velho, que faria quinze dentro de poucos dias, deitava-se sobre o próprio sangue. Tinha os olhos bem abertos e vidrados, completamente morto.

Ele achou que fosse levar uma surra, como quando esquecia alguma ferramenta fora do lugar. Em vez disso, o ferreiro passou a mão pela testa, apertou os olhos entre os dedos e saiu sem uma palavra. Quando voltou, tinha duas grandes canecas de madeira que encheu de cerveja escura e colocou sobre a mesa. Empurrou um em sua direção.

— Beba. — foi a única coisa que ele disse, então o menino mais novo bebeu. A cerveja tinha um gosto amargo e era tão forte que em instantes suas mãos formigavam e a cabeça pareceu flutuar sobre os ombros. Nunca antes o ferreiro dera cerveja, nem a ele, nem ao aprendiz mais velho. Lembrar do outro garoto, com quem dividia um colchão de palha num quartinho minúsculo, encheu seu coração de mágoa. Pensou em dizer que não teve a intenção de apunhalá-lo, mas ele pediu. Insistira em entregar o melhor trabalho para o ferreiro e isso custou-lhe a vida.

O ferreiro virou sua cerveja, bateu a caneca na mesa e olhou para ele sob grossas sobrancelhas acobreadas pelo brilho escarlate da forja. Seu rosto era severo e duro, imóvel como uma estátua de soldado, desprovido de qualquer expressão. Hoje, porém, tinha um semblante abatido e o olhar parecia carregado de tristeza. Ele se levantou, uma montanha de músculos forjada pelos anos de trabalho duro, apanhou uma ânfora de uma prateleira e despejou um líquido transparente na caneca. Deu um gole e bufou. Num instante seu rosto ganhara um tom avermelhado e seus olhos brilharam quando as lágrimas subiram.

— Esse aqui não é pra você — disse, quando viu o garoto o olhando com grandes olhos ansiosos — porra, nem para mim.

O que sobrou jogou na lareira e uma labareda laranja subiu.

— Parece que somos só nós dois agora... vai beber isso? Ótimo. Vou precisar que me ajude a colocar esse lugar em ordem... — passou uma mão grossa e calejada pelos cabelos brancos, que rareavam nas têmporas, e tomou um gole da cerveja do garoto — precisamos planejar nosso trabalho... lembre-se disso, garoto, sem planejamento não há êxito... de nada serve um planejamento sem organização e disciplina... — virou o resto da cerveja e jogou a caneca vazia na mesa.

Quando o ferreiro deixou-se cair de volta na cadeira, o menino mais novo percebeu que estava completamente bêbado. Balbuciava mais para si mesmo do que para ele.

— Sem disciplina só resta bagunça, bagunça e bagunça... tava tudo planejado, mas nada foi organizado. Nada, nada! — passou a mão na alça da ânfora, virou na caneca, bebeu e imediatamente cuspiu boa parte numa nuvem de perdigotos que choveu sobre o garoto, então continuou, a voz rouca e pesarosa — Treze anos, garoto... por treze anos cuidei daquele rapaz como se fosse meu próprio filho. Treze anos vendo a cidade afundar cada vez mais e as pilhas de corpos subirem tão alto quanto as muralhas ao sul... — Fez uma pausa, olhava as chamas, mas via além. — Treze anos de planejamento... heheh, treze anos e tudo acabou por causa de uma cota de malha mal feita.

Dessa vez ele gargalhou, um som alto e áspero muito parecido com o grito de uma gralha. Tinha lágrimas nos olhos quando parou e o sorriso se foi junto. Olhou para o aprendiz mais novo, um garoto com não mais que doze anos, magro como só os de fora poderiam ser e burro como qualquer um dentro.

— Lembre-se de organizar as ferramentas antes de guardá-las. — foi a última coisa que disse antes de deixá-lo.

Ainda era noite quando o ferreiro o acordou com um chacoalhão.

— Acorde — grunhiu, naquele tom irritadiço de sempre — temos uma tarefa ingrata para fazer antes do sol nascer.

O menino afastou o sono dos olhos com as costas das mãos, calçou suas botas e encontrou o ferreiro do lado de fora da forja, que ficava nos fundos da casa. Dois cavalos cujas respirações flutuavam em nuvens brancas no ar gelado, cavocavam o chão em frente a uma carroça coberta com uma lona escura, impacientes. Alguma coisa os incomodava, mas não soube dizer o que poderia ser até subir na carroça. Ali, enrolado numa capa vermelha, dourada, branca e toda chamuscada estava o corpo de aprendiz mais velho.

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