Execução

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Fuminho foi chutado da carroça com o mesmo desprezo que o velho antes dele, caiu de joelhos no chão duro e empoeirado da antiga ponte e sentiu o ar faltar. O chute da armadura tinha lhe quebrado algumas costelas.

— Levanta! — berrou a voz metálica abafada pelo visor do elmo roliço que se aproximou ameaçadoramente com um punhal. Fuminho quis chorar, mas sabia que se o fizesse seria deixado para a saideira, então segurou a respiração e seguiu em silêncio a segunda fila de prisioneiros. Duas armaduras posicionavam o primeiro grupo ajoelhados na beirada da ponte caída.

— Anda logo com isso!

Uma terceira armadura se aproximou do primeiro grupo carregando a maior besta que Fuminho já tinha visto, enfeitada com um crânio de cachorro amarelado. Andou de um lado a outro atrás dos prisioneiros, parou, apontou e disparou. Num piscar de olhos o escolhido desapareceu. Fez-se silêncio, então ouviu-se o corpo atingindo as águas turvas do rio lá embaixo. Os soldados vibraram dentro de suas armaduras e a besta foi entregue ao próximo, que repetiu o processo: andou, escolheu o alvo, apontou e disparou. O corpo caiu e novamente fez-se silêncio. Dessa vez, porém, não houve som algum.

As armaduras riram, a besta foi entregue ao próximo e assim foram os próximos minutos: alguns iam direto pra água, outros caíam sobre mortos antigos, aumentando quase diariamente os montes da vala comum.

Quando entediados, os soldados surgiam com diferentes maneiras de estender as execuções, tornando-as menos monótonas e mais empolgantes, para eles e para o público que acompanhava a uma distância segura. Tinham por tradição levar seus prisioneiros e desafetos ali todas às sextas. De vez em quando às quintas e até mesmo às quartas, dependia do humor, mas às sextas eram garantidas. Assassinos e violadores podiam esperar, ladrões e arruaceiros, por sua vez, recebiam o castigo de imediato quase sempre — às vezes sequer os levavam até ali, ainda que seus corpos fossem recolhidos pelos abutres, empilhados em carroças e despejados no rio venenoso.

Hoje seria a vez de Fuminho: um catador de bitucas receberia a sentença como qualquer outro criminoso. "Todo mundo é aqui", pensou e sentiu o gosto amargo do fracasso no fundo da garganta por ter sido pego.

O quartel na praça central era o melhor lugar para encontrar as bitucas deixadas pelos soldados, mas também era um dos mais perigosos e vigiados, ser pego ali poderia significar qualquer coisa entre muita dor e morte certa. Estavam em três, mas seguiram por ruas diferentes ao se aproximar da praça central. Fuminho foi o primeiro a chegar e logo sentiu algo diferente. A rua parecia totalmente vazia, não fosse por um ou outro corpo caído contra uma parede. 

Encontrou a primeira bituca sob uma das janelas do quartel, completamente queimada, mas enfiou no bolso mesmo assim. Do outro lado da rua, viu um dos garotos se esgueirar, apanhar algo no chão e seguir como um gato farejando comida.

Foi então que percebeu que se tratava de uma emboscada. As armaduras espreitavam, frias e silenciosas sob as árvores, a chegada dos catadores. Viu uma delas separar um garoto em dois, num canto foram parar suas pernas, noutro o restante. Assustado com a investida, Fuminho mijou nas calças e ficou paralisado tempo o bastante para ser agarrado por uma mão cheia de dedos de aço e depois arremessado ao fundo da carroça, onde permaneceu estático.

Ouviu-se mais uma vez aquele som que lembrava um tapa — quando o corpo caía direto na água —, então chegou a vez do segundo grupo de prisioneiros.

Um garoto alto e magricela, poucos anos mais velho que ele, chorou quando a armadura se aproximou para colocá-lo em posição.

— Por favor, senhor, eu tenho fumo! Uma bolsa de fumo! Eu te levo lá se não me jogar... por favor... — barganhou com voz esganiçada e catarro escorrendo pelo nariz. Bastou isso, algumas lágrimas e uma súplica para receber o pior castigo da noite.

Fuminho estaria morto e encalhado num monte de cadáveres apodrecidos antes que as latas se dessem por satisfeitas com a saideira da semana. Tinha aprendido que não adiantava barganhar com lata vazia.

O garoto se debateu como um gato antes do jantar quando foi agarrado pelo pescoço e erguido. Lutava para não ser jogado, mas a armadura, muito mais forte, o dominou com punhos de ferro e o arremessou como um saco de farinha. Porém, assim como um gato que luta por sua vida, o garoto se agarrou ao soldado e por um instante pareceu que ambos mergulhariam no breu. Seria uma visão maravilhosa, mas para sua tristeza, a armadura conseguiu recuperar o equilíbrio e se livrar do garoto com um soco. No entanto ele não caiu sozinho. Levou consigo a placa de peito, cujas amarras de couro arrebentaram com o golpe do soldado.

— Filho da puta! — vociferou o soldado furioso para o vazio. Fuminho viu o peito nu do sujeito que se escondia sobre a placa de aço e ficou surpreso.

"São homens como qualquer outro", notou enquanto o soldado caminhava pesadamente de volta a carruagem que os trouxera ali, removendo o resto das peças protetoras. Retirou o elmo, depois as ombreiras e braceletes — coisa que Fuminho nunca viu acontecer.

— Você aí! Pode vir. — urrou a voz metálica apontando um dedo igualmente metálico para o velho a sua frente. A armadura se afastou a passos largos e Fuminho sabia o que estava por vir. Usariam as lanças.

Uma mão revestida em anéis agarrou uma lança com mais de dois metros. O velho tinha os dedos entrelaçados sob o queixo e murmurava algo baixinho. Muitos prisioneiros faziam aquilo quando sua hora chegava, mas ele nunca entendeu qual era a finalidade, ninguém os ouvia, nem ouviria quando teve o pescoço atravessado pela ponta de ferro. O corpo caiu, então o soldado apontou para ele. Sua vez tinha chegado.

Antes de ser arrastado até a beirada, Fuminho ficou de pé e se posicionou sem precisar ouvir as ordens dos soldados.

— Esse aí já sabe o caminho hehehe — ouviu uma armadura comentar entre gargalhadas com os colegas.

— Vai ser rápido, moleque, é só ficar quieto e não se mexer. — disse o soldado de peito nu. Fuminho não ousou levantar os olhos para ver como era seu rosto. Não precisava. Sabia que era um homem como outro qualquer, escondido atrás de aço e malha. Abaixou a cabeça para olhar o rio que corria lá embaixo e foi atingido pela visão dos milhares de corpos pálidos e disformes que se amontoavam uns sobre os outros. A visão se parecia exatamente com o cheiro que exalava: hedionda. 

Do outro lado do rio, grandes aves escuras observavam a execução. De quando em quando uma levantava voa, cansada de esperar, e ia à procura de alimento fresco em outro lugar — ali não faltava. 

Fuminho ouviu a armadura se afastar, faria com ele o mesmo que fizera com o velho: receberia uma lança comprida pelas costas e morreria na queda. Por um momento pensou em unir as mãos e murmurar qualquer coisa em voz baixa, quem sabe na sua vez não desse certo aquilo que todos faziam antes da morte?

"Não vai dar", pensou, então correu e pulou.

A lança zuniu sobre sua cabeça e ele mergulhou no escuro. Por um momento não soube se estava vivo ou morto, então viria o som de tapa. Não veio. Fuminho afundou e ao mesmo tempo foi levado pela correnteza do rio morto. Abriu a boca para respirar, mas engoliu a água venenosa. Lutou para não se afogar e, pouco antes de perder a consciência, sentiu que uma mão gigante o agarrava e puxava para fora da água.

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