Decreto

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Um velho curvado puxava com sofreguidão a corda do sino do quartel quando todos já se amontoavam na praça central, sob a fresca, porém sufocante, sombra da muralha do palácio. Sobre o palanque de madeira, armado em frente ao prédio do quartel, subiu o novo Arauto, vestido de azul e com um grande chapéu com pluma amarela que o protegia do Sol. Retirou do cinto um pergaminho, desenrolou com um gesto espalhafatoso, e limpou a garganta antes de começar.

— Esta manhã, — gritou, a voz esganiçada, embora mantivesse a postura — em cúpula extraordinária realizada com membros da corte, chefes de comércio e dirigentes das grandes famílias, o rei decretou que...

E quem caralhos é você? — berrou alguém no meio da multidão, que explodiu em gargalhadas. 

Sob o palanque, onde o Arauto tentava identificar o engraçadinho, duas fileiras de guardas armados e estáticos aguardavam com frieza o pronunciamento. Era como se as armaduras estivessem completamente vazias, mas ninguém se sentia confiante o bastante para questionar se existiam ou não pessoas ali dentro.

— Sou o novo arauto do rei! — retrucou o Arauto a plenos pulmões para que todos ouvissem e, imediatamente, aceitassem autoridade inerente a sua posição.

"É só um mensageiro" e "que pronunciamento" eram alguns dos comentários que conseguiu pescar da multidão impaciente. Tentou, sem sorte, identificar os donos dos comentários impertinentes quando uma velha cega ergueu uma mão e perguntou:

— Que aconteceu com o mensageiro antigo?

— Cadê o Bigode de Leite? — emendou um segundo.

— É aquela cabeça na muralha? Não tava lá ontem — berrou um homem forte que apontava na direção dos espigões da muralha. Um mar de cabeças virou para olhar.

— Aquele era o arauto anterior — pontuou o Arauto. — Estamos em guerra — continuou, elevando sua voz desafinada sobre o burburinho. — Em comum acordo com a corte e os demais membros do conselho, o rei decreta que, enquanto houver guerra nestas terras, cada homem, mulher e criança terá o direito a se armar, como lhe for possível, para proteger a si próprio e aos seus, garantindo, assim, sua segurança... e dos seus, contanto que se comprometa a manter a paz na cidade.

Sua voz ecoou pela praça silenciosa e o vento soprou, frio e carregado com os cheiros de suor, urina e podridão. O Arauto apertou a ordem real entre os dedos e esperou pela reação do povo, quando uma centena de vozes diferentes se ergueram em discussões distintas:

— Não preciso de uma espada!

— Precisamos de comida, seu fodido!

— De que serve um arco se não tem pão nesse caralho!

— É pra enfiar no cu?

— Com o que vou alimentar minha família?

— Nem tem mais caça, seu doente!

Um sujeito largo e pesado, calvo, com cabelos grisalhos compridos e barba espessa falou e sua voz cavernosa silenciou a multidão de forma mais eficiente que as tentativas do Arauto. Tinha um avental de couro e um cinto de ferramentas ao redor da cintura, e todos o ouviam com atenção redobrada, até mesmo com certa reverência.

— Por que caralhos esses enlatados vem toda semana na nossa porta cobrar tributo? — esbravejou o ferreiro, chacoalhando um par de tenazes na direção das armaduras. — Que diabos o rei faz com o pagamento? Nosso pagamento! Não bastasse o tributo, precisamos nós mesmos nos defender? De quê? De quem? Pergunto ao mensageiro, então, onde estão nossas armas? Ou será que devemos pagar tributo pra isso também?

O Arauto apontou para os guardas a direção de onde o homem falou, mas no mesmo instante uma maçã podre voou e explodiu numa placa de peito, que se manteve petrificada. Alguém poderia até dizer que, vazias como aparentavam, tinham sido pregadas ao chão.

Motivados pela primeira maçã atirada, um grupo de crianças nuas e maltrapilhas fez chover sobre os soldados alimentos podres, fezes e pequenos pedregulhos, que tamborilavam inofensivamente em ombreiras e elmos de metal.

— De que servem armaduras vazias? — zombou o ferreiro.

O Arauto enrolou o decreto e teve tempo de se abaixar para evitar receber um punhado de bosta na cara. Seu chapéu de pluma amarela, no entanto, não teve tanta sorte e foi arrancado de sua cabeça. As crianças gritarram e urraram com suas vozes infantis e esganiçadas. Centenas de vozes se juntaram aos berros de desafio e por um longo momento, a multidão tinha reencontrado um sentimento há muito perdido, tão esquecido pelos anos que ninguém lembrava se tinha ou não uma palavra que o representasse.

Só então as armaduras ganharam vida e entraram em formação sob o palanque com um estrondoso ruído de metal batendo contra metal. Não houve tempo: de lanças em riste e escudos alinhados, eles avançaram. Três pessoas foram espetadas ao mesmo tempo, uma delas, erguida e arremessada como um saco de ração rasgado, voou sobre a cabeça dos que fugiam.

Em resposta ao ataque, mais comida podre choveu sobre as armaduras, até mesmo a carcaça inchada de um gato podre que espalhou vísceras e sangue pelo metal polido.

O Arauto correu e montou seu cavalo antes que a turba resolvesse arriscar uma investida absurda e impossível contra sua comitiva armada e protegida, no entanto, mal teve tempo de sentar na cela de couro quando sua montaria foi atingida por um pedregulho disparado de uma funda e empinou. Seu corpo foi lançado ao chão e antes que pudesse ser agarrado pelas mãos calejadas dos populares mais próximos, uma barreira viva de soldados se formou ao seu redor, permitindo uma fuga desajeitada pelos portões do palácio.

A praça central tornara-se um sangrento campo de batalha num piscar de olhos. Homens e mulheres vestindo trapos e coletes esfarrapados, armados com espadas tortas, pedaços de pau e lanças improvisadas, enfrentavam um batalhão de soldados, protegidos por placas de aço luminosas sobre camisões de cota de malha, confortavelmente ajustados sobre coletes de couro fervido, preso por fivela ao redor de uma camisa de algodão. As camadas protetoras, no entanto, faziam com que sofressem o calor que castigava a cidade há anos, por isso avançavam com lentidão, bufando e praguejando, com vapor de suas respirações escapando pelas fendas escuras dos visores de seus elmos polidos.

À investida das armaduras seguiu-se um massacre. Os mais sortudos foram presos e acorrentados, outros foram empalados e deixados à sombra da muralha, mas todos teriam o mesmo destino. Arruaceiros e agitadores eram executados todas às sextas na antiga ponte caída, agora um cemitério a céu aberto.

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