Banquete

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A água era venenosa daquele lado da cidade, escura e salpicada de ilhotas flutuantes formadas por corpos em decomposição, terra firme para dezenas de aves hostis e bicos compridos. 

"Bicho pernicioso", praguejou em pensamento o barqueiro, conforme conduzia sua pequena barcaça por caminhos sinuosos. Um dos pássaros, atento a movimentação, ergueu as asas e berrou um desafio.

Ele prosseguiu, tão imóvel quanto os mortos. Homens, mulheres, crianças, velhos. Também tinham alguns animais e coisas retorcidas, tão disformes que jamais saberia dizer o que foram em vida. Todos livres para serem banqueteados pelas aves e o que mais vivesse por ali. 

Deslizou para a escuridão densa que se acumulava sob a antiga ponte, dois arcos gigantescos feitos de grandes blocos de mármore branco erguidos a mais de trinta metros de altura da superfície do rio. Aquele fora um lugar movimentado e cheio de vida, com espaço suficiente para mercadores montarem suas barracas nas laterais e ainda assim uma dezenas de carroças entrarem lado a lado. Mas isso fora antes, quando a ameaça da guerra ainda rondava a cidade, como aquelas aves agora faziam. 

O primeiro arco que ficava sob as muralhas da cidade era o único que ainda resistia ao tempo. O segundo fora reduzido a uma pilha de escombros queimados que serviam de abrigos para ratos, fantasmas e demônios. Ele os ouvia à noite, jogando pragas uns aos outros em vozes roucas. Berravam e gargalhavam em línguas estrangeiras. Às vezes saíam nas noites sem lua para jantar algum cadáver fresco. Então ele tinha que esperar e esperar, amaldiçoando-os em pensamento enquanto a barriga roncava furiosamente.

Hoje, porém, havia lua. Uma grande esfera redonda dividida ao meio por uma rachadura irregular, tão brilhante que mantinha os predadores em suas tocas. 

Além disso, muitos daqueles corpos eram recentes e seus olhos treinados espiavam com atenção pelas lentes de sua máscara protetora por algo realmente bom. Não demorou até encontrar: um jovem loiro e feio como o diabo, enrolado num trapo queimado. O barqueiro ancorou ao lado da pilha de corpos e saltou para a água negra. Os olhares vazios e leitosos já não o incomodavam mais, eram amigos. Apalpou o braço do garoto e sentiu a fria maciez de sua pele.

"Logo vai tá duro feito pedra", pensou e puxou do barco uma faca afiada. Fez seu trabalho depressa e com precissão. 

Com um empurrão do remo, a barcaça tornou a deslizar pela superfície venenosa do rio. O barqueiro cantarolava uma canção qualquer, abafada pela máscara, feliz por não ter que dormir de barriga vazia e por ter encontrado o que certamente seria um banquete digno da realeza.

Sua morada aquela noite ficava nas profundezas abandonadas do que fora uma estalagem, esquecida sob os escombros da muralha branca, que desabou sobre centenas de casebres e prédios quando a guerra enfim chegou. Não havia mais ninguém por ali, todos se foram com os anos, mas a história do lugar ainda podia ser lida em suas paredes cinzentas, sob camadas intocadas de poeira — isso se você soubesse o idioma. Nomes de pessoas conhecidas e seus feitos, mas ele não tinha interesse algum nas vidas dos homens do passado.

Entrou carregando a bolsa de couro com as duas mãos, pesada com a carne, e se pôs a preparar o banquete. Cortou cebolas escuras, cenouras murchas e alguns alhos. Jogou tudo numa panela de ferro preta, pegajosa de óleo, pegou um jarro com água escura da chuva e acendeu o fogo no centro do cômodo, que logo ficaria cheio de fumaça.

Também trouxera a cabeça.

Era solitário ali e, muitas vezes, sentia falta de conversar com alguém que o entendesse. Por isso, quando tinha a oportunidade, gostava de jantar acompanhado. Então pegou a cabeça, mergulhou algumas vezes num balde de água suja e a limpou o melhor que pôde.

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