Megan estava lá atrás, com um arco de orelhinhas redondas na cabeça e rabinho de pelúcia, segurando uma lança que era só um cabo de vassoura com um isopor de losango na ponta, misturada àquele monte de ratinhos em librés de baixo custo que cercavam o Quebra-Nozes e seu florete molenga enquanto a Clara, a loirinha, apenas fugia desesperada de um lado para o outro do palco.
Megan não conseguia enxergar direito por causa daquela muvuca e das luzes fortes que lhe ofuscavam tudo o que estava além daquela plataforma apertada demais para tanta gente, mas ela conseguia ouvir um monte de gargalhadas adultas — e Megan sinceramente não sabia se estavam rindo da sua inércia em meio à grande batalha do primeiro ato ou justamente da grande batalha exagerada por aquele monte de crianças hiperativas. Sério, tinha ratinhos e soldadinhos caindo e rolando para todos os lados, derrubaram até a pilha de presentes cenográfica.
Nisso — ela bem se lembra como foi, porque seu cérebro registrou tudo em câmera lenta —, um dos soldadinhos caiu, e a Clara estava andando de costas, tropeçou no soldadinho e no próprio vestido de cetim rosa, caindo para trás num TUM! tão alto que Megan acreditava ter reverberado pelo colégio inteiro, mas que na verdade foi abafado pela gritaria das outras crianças que, como quaisquer crianças numa peça de teatro, perderam totalmente o controle.
Foi esse "TUM!" que acordou Megan, fazendo ela piscar algumas vezes, vendo a Clara bem ali, quase aos seus pés, com uma expressão de dor, escondendo os olhos na franja loira. E o idiota do menino que tinha feito ela cair simplesmente levantou, olhou para ela e saiu rapidinho de perto, não se preocupando nem com o fato de ela ser a protagonista.
Bom, Megan era do exército de ratinhos, não era ela que tinha que ajudar a Clara; mas aparentemente ninguém percebeu que a menina poderia ter se machucado de verdade, já que aquela cena — de poucos minutos e uma eternidade — focava quase que exclusivamente na vida própria e heroica que o Quebra-Nozes ganhara.
Então Megan suspirou e foi lá, ciente de que se tornava uma traidora do Reino dos Ratos, e estendeu sua mão livre e perguntou aos olhos castanhos lacrimejados que a perceberam com surpresa:
— Tá tudo bem? — A barulheira era tanta que Megan nem conseguia se ouvir.
Só que a Clara deve ter entendido, porque fez que sim com a cabeça, mesmo que a cara de choro respondesse o contrário, e aceitou a ajuda de Megan-ratinha para se levantar. Megan entendia que ela deveria estar toda dolorida, afinal. E depois de prestar socorro, nos próximos segundos, ficou parada, observando a Clara ajeitar o vestido, sem saber o que dizer ou o que fazer (dentro do contexto, seria cabível ela aproveitar a oportunidade e sequestrar a Clara ali, assim ganharia pontos com o Rei dos ratos; porém, embora não parecesse, os professores ainda tentavam ditar, de trás das cortinas, tudo o que os ratinhos, os soldadinhos e os protagonistas deveriam fazer).
Quem fez alguma coisa antes foi a própria Clara, que do nada beijou a bochecha de Megan e se afastou — deixando aquela ratinha paralisada, corada, piscando várias vezes.
Olivia Rebecca Loveless tinha acabado de lhe dar um beijo no rosto???????????
Elas tinham oito anosnaquela época.
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E esse foi o efeito que Olivia causou em Megan
Short StoryGia H. © 2019 Conto criado para a coletânea Final de Ano, do grupo @LGBTemas.