Consulta

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Certa manhã, Luíza teve uma consulta com a criança, quando esta apresentava condições mais ou menos estáveis. Junto da profissional havia um gravador, que seria encaminhado para a polícia logo após o encerramento da conversa. A psicologa tratou de diversos assuntos com Rhaiany, dentre eles as amizades que ela tinha com outras crianças, seus sonhos e seus gostos. A consulta apresentava as características de um dialogo típico que a Luíza já teve com crianças, se não fosse o momento em que o tema do assunto passaram a ser os medos da Rhaiany:

- Me lembro que a professora contou pra gente um dia... Uma história antiga dos índios... Sobre como nasceu a noite - Disse Rhaiany

- Já ouvi falar dessa história, mas não me lembro de como era. Poderia conta-la pra mim? - Perguntou a Luíza curiosa em entender a relação da lenda indígena com os medos da paciente.

- Antes só tinha o dia. A noite ficava presa dentro de um coco de cutumã, que ficava no fundo dos rios, e a cobra gigante chamada Boiuna tomava conta. Tinha um índio chamado Aruanã, que era casado com a filha de Boiuna, uma índia chamada Tuíla. Aruanã foi procurar a Bouina para pegar o coco e abrir pra ter a noite. Aí ele achou ela, aí a Boiuna deu o coco para ele e disse que só pode abrir quando a sua filha estiver perto. Mas Aruanã ficou curioso, os animais da floresta falavam para ele não abrir, mas não adiantou, ele abriu. Aí tudo ficou no escuro, apareceram os bichos que viviam nas trevas. E seria escuridão pra sempre...

- Mas tinha um pássaro né? Ele separou o dia da noite - Interrompe Luíza se lembrando de certos detalhes da lenda.

- Sim, o Cajubi, a Tuíla criou ele para livrar o mundo da escuridão que era eterna.... Mas tenho medo... - Diz Rhaiany desviando o olhar e abaixando a cabeça.

- Da noite?

- Da escuridão, das trevas eternas... Tia, eu acho que essa história pode ser verdade

- Acha é? por quê?

- Por que eu acho que o Cajubi estava fazendo ter o dia e a noite.

- E ele não estaria fazendo isso ainda? Temos ainda o dia e a noite.

- Não... Acho que não... Acho que o pássaro morreu.

- Por que acha isso?

- Por que eu sinto, tia. Sinto que a escuridão eterna está vindo. As vezes eu sonho com isso.

- Então todas estas vezes que você acordava chorando desesperada é por conta desses pesadelos?

- Alguns sim, quando o sonho é muito assustador. Mas as vezes não assusta muito. Eu sonho com coisas estranhas, não sei como falar como é.

- Eu sei, está tudo bem. As vezes não conseguimos passar algo para alguém só falando. Eu tenho umas folhas, alguns lápis de colorir e giz, se quiser mostrar para mim os sonhos que você tem, você pode desenha-los.

A garota rapidamente pega os materiais, e começa a desenhar. Luíza esperava que desenhando seus sonhos, Rhaiany pudesse revelar alguma coisa referente a sua família ou ao crime. Era estranho que ao desenhar a família ou os amigos, os traços da garota eram coloridos e razoavelmente transmitiam alegria, no casos dos pais com pequenos mistos de tristeza, algo compreensível tendo em vista o perfil dos mesmos. Tudo indicava que o amor que ela tinha por eles era recíproco, apesar dela ter relatado momentos de brigas e solidão que passava.

Nada a respeito representações de momentos de violência ou abuso sexual, na escola ou em casa. O que saia da mente da perturbada Rhaiany e era projetada no papel deixava a Luíza intrigada. Era algo um tanto curioso e inesperado uma criança desenhar coisas tão detalhadas e ao mesmo tempo tão próximas aos caóticos quadros abstratos, ou as intensas ilustrações expressionistas. Uma paleta de cores frias e mortas preenchiam cada espaço branco das folhas que usou, porém a cor que predominou os desenhos era o preto. Formas irregulares, monstruosas e grotescas espantavam Luíza. Algo tão espantoso quanto a obra " Saturno devorando um filho", de Francisco de Goya. Um misto de abstratismo, caos e turbulência era moldado pelos traços da menina.

- Você sempre teve este medo Rhaiany? - Indaga Luíza olhando os desenhos prontos, pensando que se tratava de um medo ou fobia que a criança tenha desenvolvido durante sua vida

- Não tia

- Quando que você começou a ter este medo? Você se lembra?

- Sim, não faz muito tempo. Foi no dia que aconteceu aquilo - Diz Rhaiany pausadamente, olhando fixamente para um canto da parede da sala, remetendo ao dia do crime. - Quando meu pai chegou bêbado em casa. Antes de ir tomar banho, ele havia deixado em cima da mesa da cozinha algumas sacolas de compras, eu fucei por que eu queria ver se ele havia trazido algum doce. Encontrei umas bolinhas escuras embaladas num saquinho transparente. Eram igualzinhas aquelas balas duras de café, ou sabor de coco... Eu abri e comi algumas... - Rhaiany para de falar do nada e arregala os olhos numa expressão de choque.

- E o que aconteceu depois?

- ... Eu vi tia... Eu... Senti

- O que?

A garotinha estava em choque, o fato de recordar-se do dia do crime a empalideceu, e sua expressão de choque ainda estava estampada em seu rosto, em traços ainda mais acentuados. Seu silêncio repentino obrigou Luiza a tentar acalma-la e realizar uma intervenção no psicológico de Rhaiany.

- Calma, respire fundo, eu entendo que é algo muito desconfortável falar sobre isso, mas as coisas que você sabe são muito importantes. E preciso saber o que aconteceu para te ajudar. Não se preocupe, o que você contar só eu vou saber. Eu sou sua amiga. Você pode confiar em mim. - O gravador ainda estava ligado. -

- E o que aconteceu depois que você comeu o doce? - Retoma Luíza segundos depois

- Eu fiquei com muito medo... Muito medo mesmo... Eu não sei do que, mas eu sentia que estava perto...

- Você está falando das trevas?

- Também... Mas eu tava com medo do que estava escondido nela...

- O que estava escondido nas trevas?

- Eu... Não sei... Eu estava com tanto medo que mijei na minha roupa... Comecei a gritar... Meus pais vieram para a cozinha... Eu me escondi por que fiquei com medo do papai ficar bravo comigo por que comi o doce que ele trouxe... - A voz de Rhaiany ficou trêmula, num inicio de choro.

Luíza via que sua insistência em prosseguir com a conversa estava fazendo mal a garotinha. Mas pela urgência e pela pressão que os investigadores estavam fazendo, ela era obrigada a obter alguma informação importante para a polícia. Ela queria encerrar com a consulta, mas não podia, sabia que tudo o que Rhaiany havia dito até o momento era irrelevante para a solução do caso. A única coisa que conseguiu fazer em meio a tensão sufocante que dominou sua sala, foi dizer "hum", prolongadamente acompanhada de balanços verticais de sua cabeça, mantendo-se imóvel sobre a cadeira, uma tentativa indireta de pedir para menina continuar.

- Não me lembro tia... Não me lembro... Depois só vi papai no chão sujo de sangue, eu tava caída perto dele também suja de sangue, mas eu tava bem... Mas papai... Tava gelado e a mamãe havia sumido... Não sei o que aconteceu tia... Eu não... - Em seguida Rhaiany entrou em uma nova crise de choro. Soluçava descontroladamente a ponto de quase ficar sem ar.

A consulta naquele dia foi encerrada. A pobre paciente piorou e teve que ser sedada para conseguir dormir. Luíza ficou com peso na consciência, além de não conseguir nada, quebrou seu juramento ao condicionar sua paciente a aquela tortura. Sua prioridade era o tratamento e recuperação plena da saúde mental da menina, prioridade esta que estava acima de sua contribuição para a resolução do crime. Mal sabia que naquele dia agonizante, Luíza veria Rhaiany pela última vez.

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