Uma tarde – K. estava muito ocupado um pouco antes da expedição do correio –, Karl, seu tio, pequeno proprietário rural, entrou no gabinete esgueirando-se entre dois empregados que traziam documentos. K. sentiu-se menos receoso com este espectáculo do que se sentira, há já algum tempo, com a ideia da vinda do tio. O tio ia necessariamente vir, K. tinha a certeza disso há cerca de um mês. Já então julgava vê-lo, um pouco curvado, amarfanhando o panamá na mão esquerda, a estender-lhe de longe a mão direita, depois apresentando-lha precipitadamente por cima da secretária, sem precaução e derrubando tudo ao passar. O tio estava sempre com pressa, porque, aquando das suas estadas na capital, que nunca excediam um dia, vivia obcecado pela embaraçosa ideia de dever executar todos os projectos que a si próprio impusera, e além disso de não falhar nenhuma conversa, nenhum negócio, nenhuma distracção que pudessem apresentar-se. Em tudo isto, K. que tinha para com o seu antigo tutor uma dívida de gratidão especial, devia ajudá-lo o melhor que pudesse e além disso albergá-lo nessa noite. «O fantasma da província»: eis como o apelidava.
Logo que se cumprimentaram – K. tinha-o convidado a sentar-se na poltrona, mas ele não tinha tempo – pediu a K. uma breve conversa em privado.
– É preciso – disse engolindo com dificuldade –, é preciso para minha tranquilidade.
K. mandou logo sair os empregados do seu gabinete, com ordem para não deixarem entrar ninguém.
– Que soube eu, Josef? – exclamou o tio quando ficaram sós, e se sentou na secretária, amontoando sem olhar para trás várias folhas debaixo do assento para melhor se acomodar. K. calou-se, sabendo o que ia seguir-se; mas sentindo-se subitamente liberto de um trabalho penoso, começou por abandonar-se a uma agradável lassidão, e observou pela janela o passeio em frente, do qual apenas se avistava da sua poltrona uma pequena parcela triangular, uma simples parede entre duas montras de lojas.
– Estás a olhar pela janela! – exclamou o tio erguendo os braços. – Por amor de Deus, Josef, responde-me! É verdade? É, pois, possível que seja verdade?
– Querido tio – disse K. arrancando-se ao seu devaneio –, não estou realmente a ver o que queres de mim.
– Josef – disse o tio no tom de advertência –, tu sempre disseste a verdade, tanto quanto sei. Devo ver nas tuas últimas palavras um mau presságio?
– Adivinho um pouco o que pensas – disse K. numa voz obediente –, ouviste, sem dúvida, falar do meu processo.
– De facto – respondeu o tio aquiescendo lentamente –, ouvi falar do teu processo.
– Então quem foi que te falou? – perguntou K.
– Erna escreveu-me – disse o tio –, ela não tem nenhum contacto contigo, tu não te preocupas infelizmente nada com ela e apesar de tudo ouviu falar. Recebi a sua carta hoje e, claro, vim a correr. Sem outra espécie de motivo, mas esse parece-me suficiente. Posso ler-te a passagem da carta que te diz respeito. – Extraiu a carta da carteira. – Aqui está. Escreve-me ela: «Há já muito tempo que não vejo o Josef; uma vez, na semana passada, fui ao banco, mas Josef estava tão ocupado que não me deixaram entrar; aguardei durante quase uma hora, mas depois tive de regressar, porque tinha uma lição de piano. Teria falado de bom grado com ele, talvez a ocasião se apresente em breve. Pelo meu aniversário, mandou-me uma grande caixa de chocolates, foi muito simpático da sua parte. Tinha-me esquecido de falar-lhe nisto na minha última carta, só agora me recordo porque mo perguntou. Para lhe dizer tudo, o chocolate desapareceu depressa na pensão: mal nos apercebemos de que recebemos chocolates de presente, eles já desapareceram. Mas a propósito de Josef, queria dizer-lhe ainda outra coisa: como mencionei, não me levaram ao pé dele no banco, porque estava em negociações com um cavalheiro. Depois de ter aguardado tranquilamente algum tempo, perguntei a um empregado se a reunião ainda demorava muito. Ele disse que era muito possível, porque se tratava provavelmente do processo intentado contra o Senhor Gerente. Perguntei então de que género de processo se tratava, se não estava enganado, mas ele disse que não estava enganado, que se tratava de um processo e até de um processo grave, mas que não sabia mais nada. Bem gostaria de ajudar pessoalmente o Senhor Gerente, porque este era muito bom e muito justo, mas não sabia como proceder e desejava sobretudo que pessoas influentes zelassem por ele. Seria, aliás, seguramente o caso e tudo acabaria bem, mas por enquanto, a julgar pelo humor do Senhor Gerente, as coisas iam muitíssimo mal. Claro que não atribuí grande importância a tais palavras, esforcei-me por acalmar este empregado ingénuo, proibi-o de falar a outras pessoas e considerei tudo isto tagarelice. Todavia, talvez seja bom, querido pai, que tu te informes deste caso quando da tua próxima visita; ser-te-á fácil obter informações mais correctas e, se for deveras necessário, intervir por intermédio das pessoas muito influentes que tu conheces. Se, em compensação, tal não for necessário, o que é o mais provável, isso dará pelo menos à tua filha a ocasião de abraçar-te em breve, o que lhe daria prazer.» Que criança tão boa! – disse o tio quando terminou a leitura, e enxugou algumas lágrimas.