7 - O advogado. O industrial. O pintor

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Num dia de Inverno – lá fora nevava sob uma luz esbranquiçada – K. estava sentado à sua secretária, já extremamente cansado, apesar da hora matinal. Para se proteger pelo menos dos funcionários menores, tinha dado instruções ao seu adjunto para não deixar entrar nenhum, dizendo que estava ocupado com um trabalho importante. Mas em vez de trabalhar, rodopiou na poltrona, afastou lentamente alguns objectos na sua secretária, depois, sem dar por isso, deixou o braço pousado ao comprido em cima da secretária e permaneceu imóvel, a cabeça inclinada.

A ideia do processo já não o largava. Perguntava muitas vezes a si próprio se não seria bom preparar uma defesa por escrito e apresentá-la no tribunal. Queria fazer nela uma breve história da sua vida e, para cada facto mais significativo, explicar os motivos que haviam determinado os seus actos, em que medida este modo de agir lhe parecia retrospectivamente louvável ou condenável, e por fim que motivos podia invocar numa ou noutra hipótese. As vantagens de semelhante defesa sobre a que o advogado apresentava não ofereciam dúvidas. Para mais, se esse advogado não fosse irrepreensível. K. ignorava aliás que diligências o advogado estava a efectuar; não seria grande coisa, em todo o caso: havia já um mês que não o convocava, e em nenhuma das anteriores conversas K. tivera o sentimento de que este homem pudesse fazer alguma coisa por si. Sobretudo, quase não o tinha interrogado. Havia, no entanto, imensas perguntas a fazer. Fazer perguntas era o essencial. K. tinha o sentimento de que ele próprio teria podido formular todas as perguntas necessárias. O advogado, em contrapartida, em vez de as fazer, tomava a palavra ou então ficava sentado à sua frente sem dizer nada, inclinando-se um pouco para diante por cima da secretária, sem dúvida porque ouvia mal, puxava por alguns pêlos da barba e fixava o tapete, talvez exactamente no sítio onde K. se tinha deitado com Leni. De vez em quando, dirigia a K. alguns conselhos sem sentido, como os que se dirigem às crianças. Palavras tão inúteis como fastidiosas que K. contava não remunerar com um cêntimo quando lhe pagasse os honorários. Uma vez convencido de o ter humilhado suficientemente, o advogado acabava quase sempre por lhe incutir um pouco de coragem. Referia então que já tinha ganho na sua totalidade ou em parte vários processos deste género, que, talvez sem serem realmente tão difíceis como este, pareciam na aparência ainda mais desesperados. Possuía a lista destes processos, ali na sua gaveta – dizendo isto, tamborilava ao acaso com os dedos numa das gavetas da secretária –, infelizmente o sigilo profissional proibia-o de mostrar estes documentos. Contudo, a grande experiência que havia adquirido através de todos estes processos ia, claro, aproveitar a K. Claro que metera logo mãos à obra, e o primeiro requerimento estava já quase terminado. Era muito importante, porque a primeira impressão produzida pela defesa determinava muitas vezes toda a orientação do processo judicial. Infelizmente, via-se forçado a assinalá-lo a K., acontecia por vezes que o tribunal não lia os primeiros requerimentos. Colocavam-nos simplesmente na pasta de arquivo, indicando que, à partida, a audiência e a vigilância ao acusado contavam mais do que todos os documentos escritos. Se o arguido insiste, esclarecem que, antes do veredicto, na altura em que todos os documentos estiverem reunidos, todas as peças relativas ao caso serão, claro, examinadas, incluindo portanto esse primeiro requerimento. Infelizmente – acrescentava o advogado –, também isto é falso na maior parte dos casos: o pri meiro requerimento é em geral mal arquivado, até mesmo pura e simplesmente perdido; e quando sucede ser conservado até ao fim – pelo menos segundo rumores que tinham chegado aos ouvidos do advogado –, mal o lêem. Tudo isto era lamentável, mas não inteiramente injustificado: K. não devia esquecer que o processo judicial não é público; se o tribunal o julgar necessário, pode torná-lo público, mas a lei não o exige. Segue-se que os documentos conservados no tribunal, e sobretudo a peça de acusação, são inacessíveis ao acusado e à sua defesa; por isso é que em geral não se sabe, ou pelo menos exactamente, sobre o que o primeiro requerimento deve tratar, de tal modo que só por efeito do acaso ele pode conter alguma coisa importante para o processo. É só mais tarde que se fica em condições de elaborar requerimentos com uma real pertinência e bem argumentados, quando durante as audições do acusado o pormenor dos artigos de acusação e o seu fundamento aparecem com mais nitidez, ou se deixam adivinhar. Nestas circunstâncias, a defesa encontra-se claramente numa situação muito desvantajosa e difícil. Mas isto é também propositado. Porque, na realidade, a lei não autoriza a defesa, tolera-a simplesmente; e a questão de saber se a alínea em causa deve ser interpretada pelo menos no sentido da tolerância, é ela própria controversa. Por isso não existem, estritamente falando, advogados da defesa que sejam reconhecidos pelo tribunal; os que intervêm perante este tribunal não passam todos, no fundo, de advogados ocultos. Claro que isto prejudica consideravelmente toda a dignidade da profissão, e na próxima vez que K. fosse às secretarias do tribunal, bastar-lhe-ia espreitar para a sala reservada aos advogados para formar a sua opinião. Ficaria sem dúvida horrorizado com o espectáculo da gente que ali se reúne. Basta a sala baixa e estreita que lhes é atribuída para indicar o desprezo do tribunal perante os advogados. A única claridade provém de uma pequena lucarna, situada tão alto que, quando alguém quer olhar para o exterior, onde aliás vai respirar o fumo da chaminé que desemboca mesmo debaixo do seu nariz e que vai enegrecer-lhe a cara, deve procurar em primeiro lugar um colega que o ponha às costas. Há no soalho desta sala – para dar um derradeiro exemplo da sua deterioração – um buraco, com mais de um ano, não suficientemente grande para que uma pessoa passasse através dele, mas o bastante para que nele enfiasse completamente uma perna. A sala dos advogados fica no segundo andar das águas-furtadas, de modo que, se alguém cai nele, a sua perna fica pendurada no tecto do primeiro sótão, e isto no meio do corredor onde os acusados aguardam. Não há nenhum exagero, da parte dos advogados, ao qualificarem de escandalosa esta situação. As reclamações junto da administração não obtêm o mínimo resultado, não obstante é rigorosamente vedado aos advogados modificar seja o que for na sala à sua própria custa. Todavia, mesmo esta maneira de tratar os advogados tem as suas razões. Visa-se neutralizar ao máximo a defesa, tudo deve assentar nas respostas do próprio acusado. Ponto de vista que, no fundo, não é mau, contudo seria um grave erro deduzir daqui que junto deste tribunal os advogados são inúteis para o acusado. Pelo contrário, eles são aqui mais indispensáveis do que perante qualquer outro tribunal. Porque em geral o processo judicial é mantido secreto não só para o público, mas também para o acusado. Isto, claro, na medida em que é possível guardar o segredo. De facto, o acusado não tem acesso aos processos do tribunal, e é muito difícil determinar a partir dos interrogatórios sobre que documentos eles assentam, particularmente para um acusado intimidado e distraído por toda a espécie de preocupações. Ora, é aqui que a defesa intervém. Em geral, os advogados não têm o direito de estar presentes nos interrogatórios; por isso, é depois do interrogatório, e se possível ao sair da sala de audiências, que eles devem sondar o acusado sobre o interrogatório, e nesses relatos já muito esbatidos encontrar elementos úteis à defesa. Mas isto não é o essencial, porque não se fica a saber grande coisa desta maneira, mesmo se, aqui como noutro lado qualquer, um homem hábil perceba mais do que os outros. O mais importante, apesar de tudo, são as relações pessoais do advogado: é o que determina principalmente o valor da defesa. Ora, pela sua experiência pessoal, K. tinha agora compreendido que a organização do tribunal, nos escalões inferiores, não é perfeita, inclui funcionários desleais e corruptos, o que provoca de certo modo falhas no sistema fechado do tribunal. E é por aí que se infiltra a maioria dos advogados, é aí que se suborna e que se escuta às portas; até houve, pelo menos nos primeiros tempos, casos de roubos de documentos. É indesmentível que desta forma se obtêm a curto prazo resultados espantosamente favoráveis ao acusado, o que dá a estes pequenos advogados matéria para se pavonearem e atraírem novos clientes; mas para o desenrolar ulterior do processo, isso não significa nada, ou nada de bom. Verdadeiro valor têm só as relações pessoais honestas, e isto com os altos funcionários, ou seja, claro, os altos funcionários dos escalões inferiores. É apenas por seu intermédio que se torna possível influenciar, por certo de uma forma ao princípio imperceptível, mas depois cada vez mais nítida, o desenrolar do processo. Claro que só um pequeno número de advogados o consegue, e fora aí que a escolha de K. tinha sido particularmente feliz. Não mais de um ou dois advogados talvez pudessem valer-se de relações comparáveis às do doutor Huld. Esses não se preocupam com a gente que frequenta a sala dos advogados e não têm nada que fazer nela. Mas as suas relações com os funcionários do tribunal são das mais estreitas. Ele, o doutor Huld, nem sempre necessitara de ir ao tribunal, ficar à espera na antecâmara dos juízes de instrução que estes se dignassem fazer a sua aparição e obter, conforme o seu humor, um sucesso aparente, na verdade nulo na maioria dos casos. Nada disto, e K. vira-o pessoalmente: os magistrados, mesmo alguns de nível superior, dão de bom grado informações, explícitas ou menos fáceis de interpretar, discutem o seguimento imediato do processo, chegam até nalguns casos a deixar-se convencer e adoptam então uma opinião diferente da sua. Contudo, neste capítulo, não se devia confiar demasiado neles; podem exprimir com força novas intenções favoráveis à defesa, e talvez logo no regresso ao seu gabinete irão elaborar para o dia seguinte uma decisão judicial diametralmente oposta e talvez mais severa ainda para o acusado do que a sua primeira intenção, que declaravam ter abandonado. Contra isto não havia, claro, nenhuma resposta possível; com efeito, o que eles disseram no encontro a sós apenas foi dito, precisamente, num encontro a sós, e não autoriza nenhuma conclusão oficial, mesmo se a defesa não devesse procurar, de qualquer modo, conservar os favores destes cavalheiros. Por outro lado, era também perfeitamente exacto que, se estes cavalheiros se relacionam com a defesa – uma defesa competente, claro –, não é por simples filantropia ou por amizade, mas antes porque numa certa medida dependem dela.

O Processo (1925)Onde histórias criam vida. Descubra agora