4 - Na sala de audiências deserta: O estudante - as Secretarias

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K. aguardou, dia após dia na semana seguinte, uma nova convocatória; não podia acreditar que o tivessem tomado à letra quando renunciara aos interrogatórios; e quando a noite de sábado chegou efectivamente sem que tivesse recebido a convocatória que aguardava, considerou-se tacitamente convidado a comparecer de novo à mesma hora e no mesmo local. Voltou lá, portanto, no domingo; desta vez, transpôs directamente escadas e corredores; algumas pessoas que se recordavam dele cumprimentaram-no no patamar, mas já não necessitou de interrogar ninguém e em breve alcançou a boa porta. Assim que bateu, abriram-na e sem se voltar para encarar a mulher que conhecia, de pé junto da porta, quis entrar directamente na sala contígua.

– Hoje não há audiência – disse a mulher.

– E porque não haveria audiência? – perguntou ele, incrédulo.

Todavia, a mulher convenceu-o abrindo a porta da sala. Estava efectivamente vazia e parecia ainda mais pobre, vazia, do que no domingo precedente. Alguns livros estavam pousados na mesa, que se mantinha no mesmo lugar sobre o estrado.

– Posso ver os livros? – perguntou K., sem curiosidade especial, mas simplesmente para que a sua visita não fosse completamente em vão.

– Não – disse a mulher voltando a fechar a porta –, isso não é permitido. Os livros pertencem ao juiz de instrução.

– Ah, bom! – disse K. concordando. – São sem dúvida códigos, e é da natureza desta justiça que sejamos condenados não só em completa inocência, mas ainda em completa ignorância da lei.

– Assim deve ser – disse a mulher, que não o tinha compreendido exactamente.

– Bom, ora bem, vou-me embora – disse K.

– Devo transmitir alguma mensagem ao juiz de instrução? – perguntou a mulher.

– Conhece-o? – perguntou K.

– Claro – disse a mulher –, pois o meu marido é oficial de diligências.

Foi só então que K. se apercebeu de que aquela sala onde não havia nada, no outro dia, a não ser uma cuba para barrela, se apresentava agora como uma sala perfeitamente mobilada. A mulher reparou no seu espanto e disse:

– Sim, estamos aqui alojados gratuitamente, mas devemos desobstruir a sala nos dias de audiência. O trabalho do meu marido tem alguns inconvenientes.

– Não me admiro tanto com a sala – disse K. fitando-a com cólera –, mas com o facto de ser casada.

– Está talvez a fazer alusão ao incidente da última audiência quando o interrompi no meio do seu discurso? – perguntou a mulher.

– Claro que sim – disse K. –, hoje é coisa passada e quase esquecida, mas no outro dia eu estava deveras furioso. E agora, é você mesma que diz que é uma mulher casada.

– O seu discurso ser interrompido não lhe causou prejuízo. Mesmo depois, continuaram a julgá-lo muito desfavoravelmente.

– É muito possível – disse K. desviando a conversa –, mas isso não a desculpa.

– Aos olhos de todos os que me conhecem, estou desculpada – disse a mulher –, o indivíduo que me abraçou nesse dia persegue-me há muito tempo. Esforço-me por não ser atraente aos olhos da maioria, para ele sou. Não há maneira de nos precavermos, mesmo o meu marido acabou por se habituar; se ele quer conservar o lugar, tem de suportá-lo, porque este homem é estudante e será sem dúvida muito poderoso. Anda sempre atrás de mim; saiu exactamente antes de o senhor chegar.

– Isso concorda com tudo o resto – disse K. –, isso não me espanta.

– O senhor quer sem dúvida melhorar uma ou duas coisas aqui? – perguntou a mulher lentamente com ar inquisidor, como se tivesse apresentado propostas perigosas, tanto para si própria como para K. – Bem vi pelo seu discurso, que muito me agradou pessoalmente. Para dizer a verdade, apenas ouvi uma parte, falhei o princípio e durante a conclusão estava deitada no chão com o estudante... Tudo é muito repugnante aqui – disse ela, após um silêncio, pegando na mão de K. – Acredita que irá conseguir melhorar as coisas?

O Processo (1925)Onde histórias criam vida. Descubra agora