— Presta atenção onde pisa pra não escorregar e cair, filho — disse Guilherme, quando terminou de vestir Luan. — Não, filho, agora não. Tá na hora de dormir — repreendeu, ao ver que a criança ia pegar um carrinho pra brincar.
— Poxa, pai, só um poquin. — implorou.
— Não. Já falei. — disse, firme.
— Ah, poxa... — respondeu Luan com um muxoxo, enquanto ia até a janela.
— A lua tá linda hoje, né? — maravilhou-se Guilherme, indo se juntar à criança em frente a janela. Luan estava de joelhos num banquinho e seu pai, de pé, acariciando-lhe os cabelos que haviam crescido bastante. Estava há uns bons 8 meses sem ser cortado.
— Tá sim... — olhou pras próprias mãos, buscando dizer algo que pudesse livrá-lo de ter que dormir — A gente podia brincar lá fora, né?
— Ah, moleque — riu Guilherme, enquanto fazia cócegas.
— Por favor, paraaa! — ria sem parar. — PAPAI, EU TENHO MEDO! — disse, ao ser colocado de cabeça pra baixo. — Ahhh!!! — e foi arremessado na cama.
— Papai te ama demais, filho. — disse, depois de cobrir a criança e se aconchegar do ladinho dela. — Eu faria qualquer coisa pra que você ficasse feliz desse jeito pra sempre. — confessou, enquanto a luz da lua cheia lambia os lençóis de Luan e ninava-os para um sonho intranquilo e perturbador.
Luan se viu dentro de um galpão grande e vazio, repleto de esteiras de palha jogadas aqui e ali. A estrutura era toda feita de pau a pique, sem nenhuma janela e uma única porta de madeira toda remendada. O teto parecia ser feito de palha; ele não sabia o que era aquilo. O lugar era extremamente mal iluminado; a única luz parecia provir dele, já que enxergava menos de 3 metros de distância. Além dele, a única coisa naquele lugar era um montinho de feno em um canto.
Entendeu logo de cara que estava em mais um daqueles sonhos malucos onde ele é perseguido. Enfiou as mãos em seus cabelos crescidos e os puxou, já desesperado.
— Ah, não — reclamou em voz alta. — Eu só quero meu pai. — as lágrimas já escorriam pelo seu rosto. Sentou no chão e ali ficou, no aguardo do que tivesse que acontecer.
Lembrando-se do que seu pai dissera, decidiu se levantar.
Bata o pé e mande-o embora.
Estava olhando ao redor quando um movimento lhe chamou atenção. O que ele achara que era o bolo de feno começou a se mover.
A se mover em sua direção.
Bata o pé e mande-o embora.
Seu coração já estava começando a disparar quando decidiu ser corajoso como a Menina Roxa.
— Não. — gritou. Em seguida, bateu o pé no chão. — Vai embora! — as lágrimas seguiam escorrendo.
Naquele momento, o monte de feno tomou uma forma escura.
— VAI EMBORA! — gritou, desesperado.
Um brilho roxo surgiu do "monte de feno".
Luan deu um passo pra trás.
A forma se aproximou e... era um gato.
Um gato de olho roxo.
— Ah. — disse Luan, tentando se tranquilizar. — É você de novo, amiguinho... — O gato parou a uns três passos de distância dele e se sentou sobre as patas traseiras. — Eu ainda tô meio triste, sabe? Você me machucou da última vez. — sentou no chão mais uma vez.
Enxugou os rastros que as lágrimas deixaram em seu rosto e limpou o nariz, enquanto analisava o gato que lambia a própria pata.
— Parece que não foi só eu que se machucou, né? — disse, ao reparar que o gatinho estava sem um olho. Inclusive, onde estava a cicatriz no pescoço?
Estava um silêncio confortável entre ele e o gato quando uma brisa soprou em sua nuca.
Uma massa disforme com olhos brilhando em vermelho estava atrás dele.
— AHHH!!! — toda a coragem que reunira foi embora. — Gatinho, me espera! — gritou, ao ver que o gato correra em direção à porta.
Sabendo que não podia ficar parado, ele decidiu correr atrás do gato, mas, quanto mais corria pra porta, mais distante dela parecia estar.
— Já vai, Imole? — disse a fera — Tá tão cedo, Imole...
Luan teve coragem de dar uma olhadela pra trás e viu que o monstro meio andava, meio rastejava. No lugar de dedos, a coisa tinha garras e deixava marcas no chão enquanto o perseguia. Os olhos vermelhos brilhando com muita intensidade.
Ele seguia correndo.
A porta seguia se afastando.
Num rompante, a porta se abriu e o gatinho voltou por ela devagar.
A fera atrás de si, ao ver o gato, diminuiu o ritmo, mas não parou como da última vez.
— GATINHO, VAI EMBORA!!! — gritou, tentando salvar pelo menos o gato.
O gato caolha miou.
Uma ventania começou lá fora e folhas secas invadiram o galpão, cujo teto foi arrancado, tamanha a força do vendaval.
A luz da Lua invadiu o lugar, preenchendo cada centímetro com sua clareza e proteção. A criatura, onde agora Luan identificou um homem velho, com barba longa e com pele esticada em cima dos ossos, começou a urrar.
— JUSTIÇA!!! — gritou a fera.
O homem/a criatura foi sugada pra debaixo da terra com força.
Luan respirava com dificuldade. Olhou pro gato, que voltou a lamber a própria pata, como a se limpar, e agradeceu.
A lua cheia brilhava intensa no céu.
Eu preciso ir embora.
Começou a se desesperar quando percebeu que não sabia o que fazer, mas sentiu um formigamento no seu braço, onde o gato o arranhara um ano antes.
— AHHH! — começou a doer e, olhando bem, parecia que uma luz estava correndo debaixo de sua pele. — PAPAI!!!
Luan estava empapado de suor quando acordou.
Seu pai não estava mais ao seu lado, mas um gato caolho o olhava da janela aberta.
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Lailai
ContoCerta noite, ao deitar em seu quarto enfeitado com posters de Jovens Titãs e carrinhos espalhados pelo chão, Luan, uma criança de 2 - quase 3 - anos, acorda no meio de um matagal lamacento.