Um Corpo Perdido

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A garota observava a tevê com pressão. Os olhos caiam pelo programa da manhã, enquanto ela estava com uma tigela de morangos nas mãos.
Sua irmã estava de olhos fechados, ainda dormindo, enquanto ouvia o programa.
Seu pai estava no trabalho, um emprego novo, um emprego que ele prometia trazer o dinheiro depois.
  Sua mãe... bem, ela estava em um cemitério... na verdade, estava em um túmulo com a data de 1937-1970, e com a frase: "Morta perante a Ditadura".
  Elas já não sentiam tanta falta, ninguém sentia, não muito como há três meses.
  A irmã mais velha era bem responsável. Michelle era o seu nome, isso aconteceu depois de uma decisão em seu nascimento, sua mãe escolheu, claro, qualquer um faria, ou seria esse, ou o nome de alguma atriz que o pai era mais apaixonado do que pela própria esposa.
  Michelle já estava irritada, então levantou-se e foi para o quarto, sua irmã estaria na sala, até que notasse que a irmã saiu, provavelmente quando o desenho acabasse, e o jornal começasse.
  Não demorou muito para que a rotina da irmã mais nova acontecesse, mas desta vez, sem trocarem uma palavra se quer, mantinham um contato saudável apenas com os olhos.   A menina passava os olhos e a ponta do indicador pelo cômodo, era necessário chamar a atenção de Michelle, e ela sabia o que estava fazendo.

— Pare de tocar.
— Podemos brincar lá fora?
— Não.
— Por favor Michelle, por favor.
— Está bem. Coloque os sapatos.

  Quando já estavam ao lado de fora, viram alguns amigos próximos, então decidiram que iriam todos até os trilhos brincar, e voltariam até o almoço. Horário que o pai das garotas voltaria.
  A cidade era pequena, não tinha preocupações, então todas as crianças andavam sozinhas por quase todos os lugares.
  Michelle e Emma estavam próximas aos trilhos, elas corriam sobre o ferro um pouco enferrujado pela chuva, enquanto riam.

— Acho melhor voltarmos, o papai vai chegar.
— Michelle, vamos ficar apenas mais alguns minutos, por favor?
— Ah... droga... e se formos bem devagar?
— Está bem.

  As garotas voltavam para casa felizes por estarem de férias, era inverno, elas teriam um mês de férias, mas mesmo assim era um bom descanso.
  Logo à frente, um carro azul estava encostado na guia, com a fumaça de cigarro saindo para fora da janela, e com o cheiro ficando ainda mais forte.
 
— Vamos bem devagar.

   Michelle apertava a mão da irmã, elas estavam andando até ouvirem o gatilho da arma.     Elas não pensaram que seria para matá-las, já que muitas pessoas iam atirar em pássaros, cachorros e gatos invasores e algumas frutas que estavam muito altas. No entanto, o barulho estava perto demais para ser na fazenda ou no ferro-velho.

— Quantos anos vocês têm?

  Michelle estava nervosa, ela estava suando frio. Emma nem tanto, já que não entendia muito bem qualquer coisa que estivesse acontecendo.

— Vamos!
— Onze e oito!

   Michelle respondeu rápido.
Logo atrás, o trem fazia barulho.

— Você vai deixar sua irmã mais nova, e vai correr sem olhar para trás. Sua irmã vai fechar os olhos, e vir na minha direção antes que o trem chegue aqui. Entendido?
— Sim senhor...

  Michelle estava com medo, e Emma já entendia que aquilo estava se tratando de um sequestro. Elas estavam longe para pedir ajuda, e ninguém iria passar por ali. A não ser que esperassem o trem.

— Eu vou vir logo, você não vai ficar sozinha.

  Emma então soltou a mão da irmã. Michelle estava correndo tão rápido, que se assustou com o barulho do trem, e ambos já estavam longe demais do carro.
  A garota retomava o ar, com lágrimas quentes e em choque. A voz era um pouco  reconhecível, mas ela não tinha visto o rosto, a placa do carro, a marca do carro, ou se quer as roupas que o homem usava.
  Provavelmente seu pai já estava em casa, era normal que ele as deixasse sozinhas, ou que elas pudessem brincar longe. 
  Michelle precisava contar a um adulto, e seu pai precisava acreditar que algo de errado estava acontecendo, mesmo depois de vários casos de sequestro perante a Ditadura Militar.
  Já andando rápido, a garota com cachos morenos pensava em como contar que perdeu sua irmã. Ela deveria contar a polícia? Dizer primeiro ao seu pai? Ela não sabia o que fazer.
   A garota estava tão trêmula, que resolveu que iria parar por ali. Ela estava longe o suficiente, Michelle sabia que precisava descansar.
  Sua irmã, sua querida irmã, só Deus sabe o que vai acontecer a partir de qualquer outro momento, e ninguém sabe se vai ser um curto prazo para que Emma morra, ou se ela irá ser devolvida com segurança.
   Michelle continuou. Uma hora depois ela estava em casa, e seu pai... bem, ele estava fazendo um almoço especial para os três.

Contos Para Não Serem LidosOnde histórias criam vida. Descubra agora