// A bailarina //

30 1 0
                                    

Espalham-se flores desenraizadas tal como as ideias e eu sorrio ao ver a menina tocar no seu rosto, as pétalas tornam os olhos esperançosos.

Embora sem tela,é como um quadro a ser preenchido por algo mais que linhas, algo que lhe dá vida.

Não importa a cor da pele mas sim a suavidade que a mesma transmite, algo mais que calma, algo menos que uma tempestade.

Emerge da agua e dá o seu primeiro suspiro segundos depois,pergunto-me o que ela viu debaixo dela, pois a superfície, este sítio, está coberto de uma falsa primavera, visto como um paraíso.

Nenhum lugar parece doce.

Nenhum lugar me traz esperança, mas a menina sorri e esconde a sua breve expressão de sofrimento,como se fosse uma mudança sem violência.

Volto para o meu lugar.

Giro uma e outra vez sobre o mesmo sítio, a mesma caixa de música que me mantém presa sem que isso seja visível,fora dela a minha boca não se abre, dentro dela muito menos.

Pequenas pautas estão desenhadas nas bordas, lêem-se como sendo instruções do que devo fazer. Vejo inúmeras cenas repetidas à minha volta, inúmeras mentes que nasceram num corpo preso, e ao fundo a menina na sua primavera, a dar-se ao luxo de permanecer na água sem pensar nas consequências.

Tenho um corpo moldado de imperfeições  e belezas temporárias, mas não sou minha, não nasci minha e ainda não vi ninguém sair verdadeiramente da caixa. Até hoje.

A esperança faz-me querer sair.

Loucuras que não quero repetir. Loucuras que preciso.

Um suspiro escapa pelos meus lábios, permaneço a seguir os passos da música e as luzes contrastam na pele, o número de danças é insuficiente contudo, as músicas esgotam-se umas atrás das outras.

Os pés de porcelana ficam manchados e eu continuo.

A quantidade de loucura certa, a melhor companhia, a música no escuro e eu deleito-me nele enquanto a ouço. Deleito-me vezes sem conta enquanto a menina desaparece do meu alcance.

Pára. Tudo menos a minha mente, o meu corpo deixa-se cair na caixa, sem fazer mais nada que os movimentos necessários e o silêncio torna-se um prazer doloroso, a exaustão consegue manter-me assim, a minha boca está seca e no entanto de qualquer modo não tenho intenções de dizer nada, nem consigo.

O simples ato de pestanejar torna-se relevante por ser dos poucos que eu faço.

E permaneço assim até que a única alternativa possível seja respirar fundo e levantar-me, movimentos automáticos, sem qualquer expressão no rosto. A música volta a tocar.

Sinto que me movo com uma lentidão exagerada,talvez com medo de que a qualquer momento a esperança acabe.

Os segundos. Os malditos segundos que passam e não passam. Passam e eu não os sinto passar.

Passaram quando eu vi aquela menina.

A menina que não era bailarina.



INCERTOOnde histórias criam vida. Descubra agora