Cansei de ser princesa: Rapunzel

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– Rapunzel, Rapunzel! Jogue suas tranças.

Era a milionésima vez que Rapunzel ouvia a feiticeira-que-se-dizia-sua-mãe falar as mesmas palavras lá embaixo, no pé da torre onde ela vivia desde os 12 anos de idade. Como sempre, a garota obedeceu. E de um jeito mais rápido que o de costume. Seria a última vez.

– OK, Rapunzel. Mantenha o sangue frio, jogue as tranças, puxe essa psicopata torre acima e finja costume – disse a garota para si mesma.

Os últimos testes tinham sido um sucesso e Rapunzel já havia se acostumado com a dor. A ideia salvadora tinha surgido há três anos, logo depois das primeiras semanas presas naquela torre. Se seu cabelo tinha força suficiente para suportar o peso da feiticeira torre acima, também deveria ter força para aguentar o peso de Rapunzel torre abaixo. 

Levou quase dois anos e meio para a princesa ter coragem de testar. Ela se assustava demais com a possibilidade de sentir uma dor imensa ao se lançar tranças abaixo. E sofria ainda mais com a ideia de algo dar errado e a doida-varrida-chamada-mãe a encontrar dependurada pelo próprio cabelo na manhã seguinte. Foi preciso passar uma semana inteira em claro para entender que era isso ou nada. Por "nada" entenda morrer presa naquela estúpida torre.

Doeu. Muito além do que Rapunzel poderia imaginar que doeria. Prender sua trança no trinco da pequena e única janela da torre e saltar abismo abaixo resultou em um tremendo puxão de cabelo, que a deixou com dor de cabeça por 15 dias. Mas valeu a pena. Seus fios eram mesmo poderosos a ponto de resistirem à queda.

Mais seis meses se passaram em novos testes torre abaixo. Aos poucos, a dor se tornou uma amiga. E foi apelidada de esperança – ou única chance de sair dali viva. Faltava apenas um detalhe. Pequeno e fundamental detalhe. Como se livrar do cabelo depois que estivesse em solo firme, metros abaixo? Subir de volta era fácil, bastava escalar a própria trança. Mas como deixar os fios para trás e fugir? Não havia nenhum objeto cortante dando bobeira pelo quarto na torre.

A única saída seria roubar a tesoura que a feiticeira-maluca-piscopata-do-mal sempre trazia na sacola quando levava as refeições de Rapunzel.

– Preciso ser ágil. Um empurrão forte na doida. Pego a tesoura. Faço um corte em seu braço para que ela sinta dor e se distraia. Prendo a trança no trinco. Dou o pulo. Corto os fios. Corro – pensava Rapunzel repetidamente desde a noite anterior, repassando seu plano infalível mentalmente.

Na manhã do grande dia, quando ouviu a bruxa chamar por ela nos pés da torre, Rapunzel sentiu o coração quase pular do peito. Lançou seus cabelos e manteve a mente focada. Hora de agir.

– Olá, Rapunzel! Está com fome? Vamos arrumar a mesa para seu café da manhã – ia dizendo a feiticeira, de costas para a garota.

Em um pulo, Rapunzel arrancou a tesoura da sacola. Ela já estava quase alcançando o braço de sua mãe-inimiga quando viu um sorriso imenso se abrir no rosto da feiticeira. 

– Rapunzel, você vai fugir? – disse ela.
– Vou! Fique parada aí e não vai se machucar.
– Ah, graças aos deuses! Não estou nem acreditando que vou me livrar de você!
– Como assim? O que você está dizendo?
– Eu nunca quis ter filhos. Sempre imaginei minha vida cheia de liberdade, viajando por onde eu quisesse, espalhando magia por aí. 

Ainda com a tesoura na mão, Rapunzel parecia em estado de choque. O que a doida-da-torre estava falando?

– Esse era o meu plano. Até seu pai ter a infeliz ideia de roubar umas coisas do meu jardim. A tal verdura chamada Rapunzel. Eu estava em uma fase mais zen, sabe? Curtindo um tempo no sítio, comendo apenas orgânicos que eu mesma plantava, ouvindo Raul Seixas dia e noite.
– Quem é Raul Seixas?
– Isso não vem ao caso... A verdade é que eu nem de longe queria uma criança para criar. Mas seu pai tinha que inventar de me roubar. Logo a mim, a feiticeira mais renomada da região, com fama de vilania herdada de família. Não dava para simplesmente deixar para lá. Quando ele me disse que a verdura era para a esposa grávida, a única punição que passou pela minha cabeça foi pedir a criança em troca da vida do casal.
– Então, eu sempre estive certa. Você não é minha mãe de verdade?
– É claro que não, menina. Algum dia você acreditou mesmo nisso?
– Só até você me trancar aqui.
– Ah, pois é... Acabei ficando com você. Cuidar de um bebê dá trabalho, mas a fofura convence a gente a seguir em frente. Foi o que eu fiz. Até você fazer 12 anos. M-E-U-S-D-E-U-S-E-S. Que garota insuportável. Mal-humorada. Implicante. Mal-educada. Chata. Eu não aguentava mais. Decidi trancar você aqui com um único propósito.
– Me torturar, certamente.
– Torturar? Daria muito trabalho. Eu queria que você se revoltasse ainda mais contra mim e fugisse. Não seria incompetência ou fraqueza minha. Eu teria feito de tudo para segurar você, incluindo trancá-la nesta torre idiota, como uma excelente vilã faria.
– Não entendo...
– Lancei uma magia poderosa em seus cabelos para que ficassem muito fortes. Imaginei que não demoraria até você descobrir que, assim como eu conseguia subir pelas tranças, você poderia descer. Trouxe essa tesoura comigo por todos os dias dos últimos três anos. Fiz questão de deixar que você a visse. Pensei que, em poucos meses, você teria um plano de fuga.

Rapunzel precisou se sentar para continuar ouvindo a história. Ela tinha mesmo um plano há anos. Mas por que demorara tanto tempo para criar coragem? O que a prendia ali?

– Eu já estava até me conformando, sabe? – continuou a feiticeira. Depois de três anos sem nenhum sinal de que você sairia daqui sozinha, comecei a pensar em contratar um dos Príncipes Encantados para vir te resgatar. Até marquei um horário na agência que organiza o trabalho deles para daqui a 15 dias. Mas que alegria! Você, finalmente, vai fugir. E eu vou ficar livre sem perder minha reputação de vilã nem gastar dinheiro com um príncipe! Acho que vou ter um ataque do coração com toda essa felicidade!

A garota continuava sem saber o que fazer. Como poderia ter sido tão boba?

– Não se culpe tanto, Rapunzel. Dá para ler na sua testa que você está se sentindo a pessoa mais tonta deste reino. Mas a verdade é que todas as culpas são minhas. Eu deveria ser mais segura de mim mesma e ter deixado você ir embora. Ou devolvido você para seus pais no dia seguinte ao seu nascimento. Sei que tenho problemas com a crítica alheia, com aquilo que os outros pensam sobre mim.
– Mas por que eu não tive coragem de fugir antes?
– Ah, uma boa terapia talvez explique um dia... Eu mesma estou indo à uma psicóloga desde o ano passado para compreender minhas crises.

Como Rapunzel continuava mais muda do que as paredes da torre, a feiticeira precisou tomar uma atitude. Prendeu os cabelos da garota no trinco da janela, se abraçou a ela e pulou. As duas chegaram bem ao chão, apesar do solavanco na aterrissagem dupla. Em uma boa tesourada, o cabelo mágico se foi da cabeça de Rapunzel, que finalmente voltou a si.

– Estou livre? – perguntou a garota.
– Voa, passarinho, voa! – respondeu a feiticeira.

Rapunzel começou a correr. Alcançou uma cidade naquela mesma noite. Durante o trajeto, teve tempo para começar a perceber que a falta de coragem para sair da torre tinha a ver com o medo de estar sozinha, sem nenhum tipo de amor. Mesmo que fosse o amor de alguém que a trancou em um lugar sem portas nem escadas. Doeu saber disso. Mas agora, ao menos, havia vida a se viver. Ali, naquela cidade. Em outro lugar qualquer. Com todas as portas, janelas e escadas disponíveis.

Em outra cidade, na direção oposta do destino tomado por Rapunzel, a feiticeira tinha um único objetivo. Comprar uma passagem de avião para o lugar mais longe que pudesse encontrar. Sua grande jornada pelo mundo estava a um passo de começar. Em busca dela mesma.

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⏰ Última atualização: Feb 29, 2020 ⏰

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