Capítulo 2 - Remetente e destinatário não se falam

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- Você o quê?! - berrou Jess.


Ela precisava quebrar alguma coisa. Seu couro cabeludo doía por ter puxado os cabelos, e nem adiantou. Como ela conseguiria ficar calma depois de chegar em casa para levar uma facada nas costas? Ainda que não fosse sua casa, e a facada fosse figurativa.

- Eu disse que usei minha conta pra mandar mensagens no seu celular. Não é nada demais, deixe de coisa e me diga logo se alguém respondeu. - Uma mulher vendo TV disse, e levou a xícara de chá que tinha em mãos aos lábios.

- Não é nada demais?! Tia! Você... Você invadiu minha privacidade!

- E qual é o problema? O seu celular nem tem senha. Se isso não é você dizendo pros outros usarem à vontade, ajeite isso.

- Mas! Mas isso é porque...

- Eu precisei. Largue de ser egoísta e vá se secar, você está pingando água por toda a casa. - A tia abanou a mão, concentrada na série que se recusava a pausar. - Não levante a voz comigo de novo ou você volta para casa, entendido? Vá, vá. Tem chá na garrafa térmica.

Jess pressionou os lábios e subiu as escadas correndo. Seus pés pediam para sair batendo com tanta força que um osso quebrasse e ninguém pudesse ignorar sua injustiça. Mas não se permitiu. Amélia poderia devolvê-la de verdade.

"Casa", sua tia dissera. Jess lá tinha isso? Se lembrava de girar a chave no portão de algum outro lugar. Mas ainda mais viva era a memória de chorar até dormir todas as noites. Não que isso tivesse mudado. Nunca se sentira "em casa" em lugar algum. Pelo menos com Amélia só havia uma pessoa que não se importava com ela. Uma casa cheia delas era pior.

Aprendeu a respirar novamente apenas ao trancar a porta de seu quarto. Um quarto de hóspedes. As lágrimas e soluços vieram no momento que se sentiu na segurança dos lençóis.

Aquele cubículo que considerava seu há pouco mais de três meses era o único lugar que podia ser vulnerável, com todo seu cansaço e inseguranças e feridas - ela mesma. Sem se preocupar com o que alguém iria pensar. E ainda assim, sua mente não largava de teorizar o que Arlec estava pensando.

Suas mãos tremendo tiraram o celular do bolso. Ela teria percebido antes como o histórico de conversas estava diferente, se não fosse o filtro cor de rosa da declaração. Por que pesquisou às pressas pelo contato de Arlec? Tinha que ter se empolgado como uma galinha que não sabe que está indo para o abatedouro? Até a foto da conta conectada era diferente também. O logotipo do restaurante de Amélia. Ela tinha se declarado para Arlec na conta do restaurante de Amélia. E ele ainda teve a decência de responder?

Jess gritou no travesseiro e tentou se sufocar, mas seu plano de morrer sem ar não deu certo. Mais fácil morrer de vergonha. Desistiu e ficou olhando para o teto. Seus lençóis estavam molhados agora, que nem ela. Pena que era difícil se importar quando sua vida estava arruinada.

Arlec nunca saberia que foi ela que se declarou, nem Jess teria coragem para repetir o plano suicida. Ele gostava de outra pessoa, afinal.

No que esse pensamento passou por sua cabeça, deu um pulo da cama.

Arlec gostava de alguém, mas ele não sabia que tinha dito isso pra ela. E se...? Não era possível... Tudo bem que ele sempre aceitou seus pedidos de casamento para quando crescessem... mas não podia ser o que estava pensando, não é? Mesmo que todo dia dos namorados, ela enviasse cartinhas e presentes, e até pouco tempo ele respondesse no mesmo nível... Ela ser essa pessoa só aconteceria numa série ou fanfic, não é?

Mas e se...? Se não fosse o quão tímido ele era sobre sentimentos, talvez fossem namorados de infância. Jess achava fofo mesmo esse lado dele. E se fosse um mal entendido? E se, esse tempo todo, ele estivesse guardando esse segredo? Aquele idiota. Só podia ser isso. Igual a vez que eles ficaram sem se falar brigando se o livro preferido dela era bom ou ruim, e depois ele escreveu cinco páginas só sobre como estava errado e virou o preferido dele também! Aquele cabeça dura!

Nós, diferentes delesOnde histórias criam vida. Descubra agora