Divã Vazio

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Penso que se talvez, e apenas talvez, não tomasse meu café sempre as sete em ponto, no bar logo abaixo do Relião, sentado em uma das mesas circulares que povoavam as áreas da calçada preferidas pelos fumantes, não precisasse ter esta conversa. Talvez se não tomasse aquele café religiosamente eu não estivesse tão preso a essa situação. Você me diria, doutor Hermes, que isso é passageiro. E posso até concordar, mas nós dois sabemos que essa é uma das mentiras mais deslavadas que contamos. Não importa o quanto se trate uma psicopatologia, ela estará lá, vegetando, se apoderando de cada brecha como se fosse o piche vedando o casco de um navio. E elas sempre voltam.

Tocando no assunto, hoje de manhã eu repeti o mesmo ritual, desci apenas de pijama do meu apartamento no 6º andar do Relião e tomei o meu café na área dos fumantes, tragando as toxinas de um cigarro sem marca definida que o zelador do bar sempre tem no bolso, amargo como a bílis, mas o vício falava mais alto.

Nunca perguntei o nome do dito cujo, está sempre lá passando um pano nas mesas e anotando pedidos de sanduíches que provavelmente causam um entupimento das artérias com a primeira mordida. Ele é como uma máquina, uma máquina de cigarros. Às vezes me sinto mal por isso, realmente mal, mas sabe como são as contas não é? Não posso perder meu tempo com pacientes que não irão pagar. Antiético é o cacete, vai dizer que estaria aqui me ouvindo se eu não soltasse algumas onças na sua mão? Essa babaquice sim é antiética.

Mas voltando ao zelador, hoje eu notei o dono do bar, outro do qual não sei o nome, discutindo com ele em um canto. Apontava para todos os lados, assim ficava difícil de saber do que estava falando, mas deixou escapar uma ou duas palavras sobre "privilégios" e "regalias", dão na mesma.

Não como se o homem tivesse dado algo a mais para algum cliente, além do câncer de pulmão enrolado num papel e dos lanches da morte. Era como se o zelador tivesse se aproveitado de alguma situação. Talvez o livro caixa? O homem não falou nada, só continuou a passar pano nas mesas, o homem máquina. Todo o orgulho sugado com aspirador, nenhum amor próprio.

O ser que eu olhava não era mais humano, estava em tal estado servil que nem reparava mais quando lhe chamavam a atenção. Apenas continuava preso à sua rotina, como eu. Estarei sendo vítima de meus hábitos?

Será que é algum tipo de carência afetiva que leva a me imaginar sendo outro?

Saí do bar bem devagar, jogando uma nota de cinco em cima do sujeito que gritava, como se fosse uma luva, eu queria era esbofeteá-lo com aquela nota, fazê-lo engolir o café sem qualidade por outros lugares que passavam longe da boca. Já na esquina, quase na Rua XV de Novembro parei e olhei o mesmo mendigo de todos os dias. Falta-lhe a maioria dos dentes, ele não fala, apenas resmunga, grunhindo como um leitão, é gordo e as pernas são amputadas, todo dia às seis e quinze vem um homem, na casa de seus quarenta anos, trazer o "mendigo" em um carro seminovo, mas bem conservado. Ouvi dizer que esse apanhador de esmolas empresta dinheiro a juros em alguns pontos da região metropolitana.

Já derrubei, quase que automaticamente, algumas moedas na lata de achocolatado que ele mantém para este fim. Ao me inteirar dos boatos comecei a deixar o troco no bar mesmo, na conta, como diz o dono, para tomar café nos dias em que eventualmente deixo a carteira no apartamento. Nada de esmolas desde então.

O cigarro do zelador queimou meus pulmões como deveria, então saquei do bolso meu pacote de balas de hortelã que já estava pela metade, tenho que me lembrar disso quando sair daqui. As balas estavam meio pegajosas, devido ao calor do meu pijama e ao tempo que estavam lá. Coloquei duas na boca e respirei fundo, como faz uma criança ao provar o mentol refrescante, ninguém mais repara em mim e em meus trajes, eu posso ir até a banca comprar o jornal, caminhar pelas lojas e sambar em meio à rua das flores que ninguém nota. Tornei-me tão invisível quanto o zelador e o mendigo são invisíveis para mim, apenas um convívio temporário e imperceptível no dia a dia das pessoas.

Divã VazioWhere stories live. Discover now