Dois

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Apolo Mendanha

Observo Jonas arrastar os dois marginais até a frente do casebre, que parece prestes a despencar. Enquanto lia o relatório entregue pelos seguranças, pensei e repensei como agir. Nunca fui bom em esperar a hora certa, sou mais do tipo movido pelo ódio. E relembrar o que aconteceu desperta em mim a pior ira que o ser humano pode ter: vingança.

Minha família tem muito dinheiro, mas não deixamos de ser fodidos por isso. Meu pai me ensinou desde cedo que sentimentos não beneficiam em nada, o que realmente conta é o poder que você exerce sobre os demais. Isso foi um dos pontos que nos tornou quase desconhecidos, apesar dos laços de sangue. Nosso relacionamento consistia em reuniões, rendimentos e contratos.

Lisandra foi o mais perto de uma confidente que tive. Minha irmã era o tipo de bem com a vida, sempre sorrindo, cheia de sonhos. Quando fui para a França concluir meu MBA, deixei uma adolescente cursando Psicologia e voltei para enterrar uma mulher que teve seu caminho ceifado pelas mãos de um inconsequente filho da puta. No mesmo dia, minha mãe foi morta, não que ela fosse exemplo de amor incondicional, longe disso. Mônica era submissa ao extremo em relação ao marido e relapsa por completo no que dizia aos filhos. Mas, por mais ferrado que pudesse ser nosso elo familiar, não posso deixar que um bando de merdinhas saia vitorioso dessa história. Eles quase nos derrubaram com a sucessão de fatos. Levou Ícaro, meu pai, à loucura. A empresa despencou, se não fosse por mim estaríamos falidos. Então, nada mais justo do que pagar na mesma moeda.

Jonas empurra a garota e o menino para dentro da casa e, com um aceno, indica que posso descer. Após a tragédia que permeia os Mendanha, eu adotei algumas medidas de proteção. Os seguranças não andam comigo para cima e para baixo, o papel deles é mais vigiar a mansão e cumprir as tarefas que peço vez ou outra.

Desço do meu Maserati Levante, abotoo o terno e, com passos calculados, adentro o aposento imundo. Literalmente horrendo. É um único cômodo, onde a cama de casal divide espaço com duas cadeiras, pia e o fogão enferrujado. O odor forte de mofo arde em minhas narinas. Só tem uma janela nesse cubículo e está encoberta com um lençol. Pura que pariu! Esses malditos mortos de fome. Foco minha atenção na criatura insignificante que mantém a criança entre os braços. Ela parece pronta para a briga, os olhos – quase grandes demais para o rosto fino – são ferinos. Duas fendas nem um pouco ameaçadoras para mim. As roupas largas e sujas lhe deixam ainda menor.

"Tenha piedade", meu resquício de compaixão pede.

Como resposta friso os lábios em completa irritação. O filho da puta do Felipo que pensasse antes de fazer a lambança. Abaixo um pouco a cabeça para fitar o moleque maltrapilho, que não deve ter mais que três anos, ele permanece encarando o chão, seu desespero é perceptível daqui, parece emanar em ondas. Volto-me para a garota. Talvez deixe o menino ir, ela não escapa. Não mesmo!

— Quem é você? — Minha voz autoritária reverbera com asco.

A marginal se encolhe, fazendo com que a alça da bolsa escorregue do ombro, parando na dobra do braço, para em seguida despencar no piso. Mesmo com medo, a tal Lívia não esconde a ferocidade com que me olha. Eu poderia bater palmas para a sua coragem, se ela não fosse inútil.

— Você invade a minha casa e quer saber quem sou? Essa pergunta é minha. Não tenho nada que possam querer. Por favor, vão embora!

Percorro seus traços com calma, tentando passar toda a raiva que está para explodir e que, com certeza, é direcionada a sua maldita família. No caso, ela.

— Você não tem nada que alguém possa querer, garota. Se fosse esperta responderia sem titubear, porque é fácil para mim dar fim na sua raça e na do menino.

FÚRIA (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora