Três

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Lívia Nascimento

O homem sai como um foguete de dentro do casebre, parece que seu ódio se multiplicou com a minha resposta. Vejo o cão sarnento o seguir. Com rapidez pego João Pedro no colo e corro para a parede do fundo, as tábuas soltas podem ser nossa salvação.

— Onde nós vamos, Nana? — sua dúvida vem num sussurro.

— Fugir, nós vamos fugir.

Com cuidado empurro a madeira, passo primeiro o menino e em seguida me enfio no buraco, tomando cuidado para não fazer barulho. Uma vez fora, seguro a mão do JP e começamos a correr. As pernas pequenas dele se atrapalham nos primeiros passos apressados, mas não demoram para impor o ritmo que mantenho. Ou sumimos ou morremos.

Atravessamos o córrego carnicento por uma parte onde a areia se acumulou após ter baixado o nível da água e nos embrenhamos na mata ao lado. Já andamos muito por aqui para cortar caminho, então sei que não muito longe tem a via principal.

Eu imaginava que Felipo tinha se metido em uma enrascada das grandes, por isso me mantive o mais neutra possível para passar despercebida. Mas, como sorte de azarado não dura, os traficantes nos encontraram de novo.

Após a morte do meu irmão, pensei com ingenuidade que ficaria em paz, até que os caras para os quais ele devia invadiram nossa casa. João Pedro tinha dois anos e dormia no berço ao lado da minha cama de solteiro. Para que os infelizes não tocassem um dedo no menino, precisei aceitar algumas das suas objeções.

Engulo em seco com os acontecimentos ainda frescos na minha cabeça. Para uma garota, que era privada de muitas partes do mundo errado, fui submetida ao lado mais sombrio dele.

— Podemos descansar um pouquinho, Nana?

Encaro a criança, que deveria estar na escola, brincando, fazendo bagunça, não fugindo de um bando de gente sem um pingo de compaixão. Estico meus braços e o ergo até deixá-lo montado nos meus ombros.

— Melhor assim? — Tento evitar que minhas mãos tremam pelo medo de que nos alcancem.

— Hum-hum...

— Ótimo.

Minha panturrilha queima por causa do esforço em excesso, não me incomodo, pelo contrário, apresso-me ainda mais, aproveitando as fisgadas para distrair minha mente do perigo que corremos. Nem os olhos pinicando pelo choro barrado me causam desconforto. Não é hora para ser fraca.

Nunca é.

Apolo Mendanha

Puta que pariu!

Não acredito que o garoto é filho da minha irmã.

— Como deixaram passar essa informação, porra! — Meu tom é baixo, muito ameaçador.

— A criança não tem registro, senhor. Nós...

— Não invente desculpas para a incompetência de vocês.

Jonas se cala.

Que vá se foder suas justificativas! Eu os pago para fazerem o trabalho, não para saírem pela tangente. Trinco os dentes de raiva. Não gosto de ser pego desprevenido. A delinquente é, ao que parece, guardiã do meu suposto sobrinho. Inferno! Como Lisandra apronta essa merda? Pelo jeito, minha família sabe muito bem como ferrar com tudo.

Corro os olhos pelo bairro imundo, alguns favelados ainda observam nossa interação, outros voltaram para a vida medíocre que levam. Tento fazer meu cérebro funcionar com lógica. O garoto é um Mendanha; por mais ridícula que seja a situação, não posso abandonar meu sangue. Esse é o principal mandamento que meu bisavô deixou: família em primeiro lugar, mesmo que a vontade seja matar todos eles.

FÚRIA (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora