Capítulo 4 - Sangue na Água

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        Quando minha mãe faleceu, pensei que estava aterrorizada como nunca antes na vida. Mas, agora, posso ver que aquilo não foi nada. Havia realmente motivos para isso? Aquele era o cheiro que eu sentira na igreja, e aquele  era o cheiro dele. Não era um cheiro comum. Mas, não queria dizer exatamente alguma coisa.
         Por mais que tentasse ficar calma, meu corpo estava em estado de alerta, como se tentasse me dizer algo. Permaneci ao lado de Abby o tempo todo, até que retirassem o soro de seu braço. Tentei pegá-la nos braços sem despertá-la, inutilmente.
            - Tudo bem calopsita, vamos para casa agora. – acalmei-a.
            - O papai vai buscar a gente? - ela ainda parecia amuada da gripe.
            - Vou falar com ele agora. Vamos? 
Demos as mãos e seguimos até o fim do imenso corredor, onde havia diversos telefones públicos.
            - Pai? – chamei-o.
            - Mellany? - ele parecia assustado e chiados interrompiam a ligação - O que foi?
            - Estou com a Abby no hospital. Precisamos de carona para ir embora. - informei e aguardei. - Pai?
Eu ouvia resquícios de uma voz, mas os chiados interrompiam qualquer chance de comunicação. As duas únicas palavras que entendi foram "Estradas fechadas" e soube que ele não viria.
         - Não consigo te ouvir muito bem, mas vou ligar para o Andrew. Vamos ficar bem.
Desliguei e logo liguei para Drew. O telefone tocava enquanto eu observava uma ventania forte fazer as cortinas dançarem. Enfermeiras corriam para dentro dos quartos, para checar se as janelas estavam fechadas. E Drew não atendeu. Deixei uma mensagem na caixa postal. "Estou no hospital. Está vindo uma tempestade e não quero arriscar ficar com Abby no ponto de ônibus. As ruas estão vazias. Você pode vir nos levar pra casa?"

            E eu esperei, esperei e esperei. A noite começou a cair, a chuva veio e nada de Andrew.  Eu cochilava, sentada em um dos bancos na recepção do hospital, com Abby dormindo em meu colo, quando um trovão caiu, despertando-me. Olhei para cima e a vi, tentando me acordar. 
           - Vamos. - nunca senti alívio ao ver tia Amanda - Seu pai me ligou.
Acordei Abby e seguimos Amanda pela entrada. A noite estava extremamente escura e a chuva era tão forte que não ouvi uma palavra do que Abby dizia, mas entendi que ela estava com medo dos raios. Corremos até o carro, debaixo da chuva grossa. 
           - Você é louca de sair em um dia como esses? - Amanda esbravejou - Não assiste aos jornais?
            - Minha irmã estava doente. Não ia deixá-la mal por causa de uma chuva.
               - Uma chuva? - ela riu, debochada - É uma furacão, sabe o que é?
Tia Amanda sempre fazia comentários assim, agindo como se eu, minha mãe ou qualquer um na pequena cidade fossemos ignorantes.
              - Claro que sei. Tivemos um aqui, no começo do ano passado. 
              - Então, deveria saber o que um furacão é capaz de fazer.
Poucas casas tinham luz elétrica, assim como poucos postes ainda funcionavam. O para-brisas não dava conta da chuva e a visão era baixa. O silêncio mortal tomava conta do carro, de modo que decidi ligar o rádio.
"O furacão pegou de surpresa nossos moradores, não é mesmo Laura?" o radialista falava, "Nossos moradores e os meteorologistas, que não previram esse fenômeno natural." a moça respondeu, "Ainda mais em uma escala tão elevada. O que devemos esperar? É motivo de preocupação?", "Não Mario, apenas fiquem em casa. Sem luz e com sinais de telefone ou TV ruins, mas não deverá destruir casas ou algo do tipo. Apenas fiquem dentro de casa." a moça alertou. "Será uma longa noite, pessoal! Obrigado Laura." despediu-se e encarei a estrada escura. Sim, seria uma longa noite.

               Entrei em casa e observei o cômodo vazio quando um trovão encheu a sala de luz. Um clique no botão e dei graças aos céus quando vi que nossa casa era uma das poucas onde ainda havia luz, graças ao gerador. 
                - A coloque para dormir. - Amanda ergueu o braço de Abby, para que eu a levasse. Como faria com um cão preso na coleira.
Doente e pegando aquela chuva gelada... Abby precisava de um banho e assim o fiz. Então, coloquei- a na cama. Percebi naquele instante que Amanda não tinha qualquer sentimento sobre Abby e senti o peso de saber que o bem estar dela dependia de mim. 
                   Depois de um dia daqueles, eu quem precisava de um banho. Estava prestes a entrar no banheiro, quando meu celular tocou. Atendi rapidamente pensando ser Andrew, mas não. Era Luna.
             - Você está bem? - ela perguntou, antes mesmo de eu dizer "alô".
             - Agora sim. Esse seu dom de saber que eu preciso de ajuda é assustador.
             - Nossa, que chuva! Você deve ter um bom motivo para estar estranha e pressinto que não é saudade. - ela disse. 
Saí do quarto e fui para o guarda-corpo da escadaria para tirar uma foto do andar de baixo e enviar para Luna.
           - E aí, o que achou da casa?- eu disse. Sabia que, assim como eu, esse estilo não fazia o gosto dela.
             - Bela casa, mas sei que não é sobre isso que você quer conversar.
             - Hoje de manhã percebi que Abby estava com febre, levei-a ao hospital...
             - Como ela está? - disse Luna com tom de urgência. 
             - Ela está bem melhor agora, eu quem não estou.
             - Eu imagino, tudo tem sido muito difícil...-   comentava, antes que eu a interrompesse.
        - Não é por isso. Quero dizer, essas coisas também, mas hoje enquanto levava Abby ao hospital, começou a chover e então de repente ele apareceu. Eu pensei em negar a carona, mas estava chovendo muito e eu estava com ela. - As palavras saíam apressadas.
             - Quem apareceu? O Papai Noel? O Bicho Papão?
             - Não. Aquele cara do Dino's.
             - O garçom gay?
             - Não, Luna!
Ela ficou um pouco em silêncio, então murmurou:
             - O que te deu o bolo com a rosa?
        - Isso. Então, eu aceitei e ele nos levou ao hospital. Ele parecia preocupado de verdade conosco. Parecia já me conhecer. Se não fosse por ele, provavelmente nós teriamos ido na chuva até o hospital e Abby ainda não teria sido atendida.
            - Isso foi bom, então! O que há de tão terrível?
         - É que... Enquanto aguardávamos a alta da Abby, nós fomos conversando e ele disse que não me deu rosa nenhuma. Que eu  deveria tomar cuidado e ver como o Andrew está. Ele pode ser só um louco, mas isso me deixou em estado de alerta.- percebi que meu tom de voz havia se elevado demais.
            - Mel? Mellany?- disse Luna, tentando frear meu surto - Mellany Lake Vidalgo!
            - Você deve estar me achando uma surtada, ou coisa assim... Até eu estou.
           - Eu te conheço desde os nossos 7 anos. Fazem 10 anos que te acho surtada.-  isso me fez rir - Continue, com calma. Ele te levou em casa? 
            - Não. Ele se afastou de mim. Foi embora correndo, como se o perigo lá fosse eu.
           - Mel, você passou por duas perdas grandes nos últimos dois anos e mesmo assim aguentou firme. Agora o seu pai surge das cinzas. Depois de o que? Oito anos?
           - Onze.- corrigi.
          - Pois é, você está longe dos seus amigos. De mim, do Andrew. É normal que se sinta só, isso tudo abriu brechas para você aceitar ajuda de um estranho. Mas, não comece a criar coisas na sua cabeça. Certo?
         – Certo. - murmurei.
Percebi que não deveria falar sobre o perfume. Luna não levaria a sério. E, também, eu não saberia explicar.
        - Eu não gosto dele. Ele pode até ser um cara muito bacana com você, pode ter cuidado de Abby, mas...- de repente seu tom ficou sério- Tem algo nele que me arrepia os cabelos da nuca. 
          - Misticamente falando?- brinquei.
          - Seriamente falando. - ela respondeu, tentando ser o mais séria possível.
          - Sabe que você não combina com essa voz séria, né? 
        - Eu sei! - ela riu - Não sei como vou poder educar meus filhos, se toda vez que fico séria as pessoas riem! Você não acha estranho uma pessoa que nunca tinha te visto antes, primeiro te presentear e depois ser tão prestativo? O que você tem a fazer é se afastar desse cara. Simples.
         -  É isso que vou fazer. - meu cabelo pingava e eu estava com frio. Não era bom ficar doente também. - Preciso tomar um banho quente. Obrigada por ligar! 
          - Fiquei séculos tentando, até que o sinal de telefone voltasse. Até amanhã, Mel.
         
            Fui para o meu banheiro. Era estranho ter um banheiro só pra mim. Toda aquela individualidade... Eu realmente quis tanto isso um dia? As coisas rotineiras pareciam cada vez mais solitárias de se fazer. Tirei as roupas e deixei-as no chão. Coloquei o celular em cima da pilha de roupas, ao lado da banheira e deixei a playlist rodando no volume máximo. Deitada na banheira, enquanto pensava em tudo que acontecera, começou a tocar Wonderwall do Oasis. Afundei-me na banheira até ficar completamente submersa, pensando em ligar para Andrew assim que saísse do banho.
                  Quando fiz um movimento para levantar e recuperar o ar, vi que não conseguia. Uma força estranha me empurrava para baixo. Seria alguém? Não, eu não sentia nada tocar minha pele, era como se estivesse sendo pressionada pelo ar. Abri os olhos e acima de mim só havia uma densa névoa branca. Desesperada, tentando sair da água, comecei a me debater. Quanto mais tentava gritar por ajuda, mais engolia água. Ouvi um estrondo no banheiro, o que estava acontecendo? Foi então que bati com a cabeça no fundo da banheira e desmaiei. Somente me recordo de ser retirada de lá por alguém, que me enrolou em uma toalha e me deixou deitada no chão do banheiro. Abri os olhos e vi um vulto com apreensivos olhos verdes sobre mim. Ainda tonta, lembro-me de ouvir tia Amanda ligando para a emergência.
               - Ela deve ter caído e batido a cabeça, há sangue na água e no chão!
Fechei os olhos novamente e apaguei.

Oculta - Série Luz NegraOnde histórias criam vida. Descubra agora