Capítulo oitavo

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O dia esteve sempre límpido e agradável, malgrado a temperatura baixa. Mas assim que anoiteceu, a neve recomeçou a cair. Não era nenhuma tempestade, não havia vento. Os flocos de neve pairavam suavemente na atmosfera até chegarem ao solo, onde se acumulavam devagar, num manto fofo e perfeito.

O local estava silencioso e deserto. Menos mal. Mark não queria testemunhas e não avisara a tia de que estava em Clear Lake. Espreitou a pousada, à sua esquerda. Havia luzes no piso de baixo, as zonas comuns, os quartos estavam às escuras. Continuava a não haver novos hóspedes. Saiu de Mason City na companhia de Ritchie no primeiro autocarro. Mentira aos pais ao se despedir para mais um dia na escola. Comprara os bilhetes com os cinquenta dólares que ganhara do tio. Já não tinha dinheiro para ir ao cinema com as amigas... Não se importou muito com isso. Os dois tinham errado por Clear Lake, procurando passar despercebidos na cidadezinha, enfiando-se em casas de jogos de arcada, onde comeram cachorros quentes e jogaram nas máquinas. Certo, foi Mark quem jogou mais, Ritchie não tinha a destreza necessária. Limitava-se a olhá-lo embasbacado enquanto ele comandava os bonecos animados no pequeno ecrã, o que chegou a ser divertido. Só saíram no fim do dia, quando o mortiço sol vespertino se punha atrás das nuvens e das montanhas.

Se tudo corresse bem, Mark teria uma explicação qualquer relacionada com o xerife de Clear Lake que precisara de falar com o rapaz. Se tudo corresse mal, não iria dar explicação nenhuma e aceitaria o castigo como escape para a sua tristeza.

Ritchie olhava em frente, mas não estava a observar o milharal do senhor Hardcove com uma minúcia inútil. Mark sabia que Ritchie estava à espera e que conversava, em surdina, com os tais deuses.

Ele aguardava a sua resposta e iria seguir os seus ditames.

Era-lhe incompreensível aquela renúncia. Ritchie preferia a morte à vida, as memórias do passado a imagens de futuro, escolhia ser ele próprio a ser outro alguém reinventado a partir de um acontecimento espetacular e irreal. No entanto, admirava-lhe a coragem e a determinação.

Ritchie voltou-se. Estava novamente a sorrir. O rapaz tinha um sorriso franco e sempre pronto. Mark apertou os braços, estremecendo gelado. As palavras não lhe saíam, o discurso bonito e correto que tinha ensaiado ao longo da viagem de autocarro para tornar aquele instante menos doloroso e estranho estava entalado algures nas suas cordas vocais apertadas. Achava que devia dizer alguma coisa que soasse apropriada. Uma despedida... um elogio... qualquer coisa.

Mark baixou os olhos. Foi tomado por um abraço.

- Obrigado por tudo o que fizeste – disse-lhe Ritchie ao ouvido.

- Foi tão pouco...

- Deste-me mais um sopro de vida. Queria ter conhecido a Carol. E queria ter tocado as canções dos Beatles!

- Podes fazê-lo ainda, se voltares comigo.

- Só me podes salvar uma vez, meu amigo.

Quando se separaram, Ritchie encarou-o. Pediu:

- Lembra-te de mim!

E Mark gaguejou:

- Jamais irei esquecer-te... meu.

- Continuas...

- Ritchie! – corrigiu às pressas e atrapalhado. – Jamais irei esquecer-te, Ritchie. Queria que tivesses escutado a música que eu gosto. A música de agora. Como aquela que ouvimos na casa de jogos. Gostaste?

- Música... porreira. Mas não é Rock 'n Roll, pois não?

Uma rajada de vento, vinda de nenhures, açoitou aquele canto minúsculo do mundo. Os flocos de neve rodopiaram loucamente, num tornado repentino que se desfez num nevoeiro branco que rodeou os dois rapazes.

Ritchie começou a caminhar, afastando-se de Mark.

Um clarão enorme, como um relâmpago, iluminou os céus escuros. E dessa claridade surgiu uma avioneta que furava as nuvens inchadas, num voo errático que ia perdendo altitude. O pequeno aparelho despenhou-se com estrondo. Entretanto, o vulto de Ritchie tinha desaparecido. O fogo, que começava na cabina de pilotagem, em breve espalhava-se pelos destroços. Aconteceu uma explosão. Mark deu um passo atrás, assustado. Ao mesmo tempo queria correr novamente para o perigo e salvar alguém... salvar alguém...

Um segundo relâmpago desfez esse cenário de caos.

A neve caía lentamente e o terreno voltou a estar silencioso, vazio e indiferente.

Mark caiu de joelhos no chão frio e branco. Escondeu o rosto nas mãos e chorou.

- Ritchie – murmurou. – Não fomos amigos, não te cheguei a conhecer... nem tu me conheceste a mim. Isto não foi nada. Tenho o coração vazio e a alma desfeita. Ritchie... será que estiveste mesmo aqui? Ou não passou tudo de um sonho? Um delírio meu?

Deixou-se ficar a arrefecer até que um dos seus primos o descobriu, num estado avançado de hipotermia, quase a desfalecer e o levou para a pousada. Teria querido, muito provavelmente, reencontrar nessa doce morte abnegada o amigo que nunca chegara a ser, o rapaz que ele salvou e que perdeu, entre relâmpagos e num intervalo absurdo de seis dias e trinta anos. Desejou ser tão corajoso quanto o rapaz que enfrentou os tais deuses.

Ritchie Valens.

Mark passou a escutar a sua música, com devoção e respeito. A cumprir a promessa de se lembrar para sempre – lembrar-se da sua alegria, da sua simpatia, da sua coragem. E porque era Rock 'n Roll, a única música que realmente valia a pena.

Não contou a ninguém a história completa do rapaz que tão misteriosamente apareceu e desapareceu do mundo, por aqueles dias de fevereiro de 1989. Um nome, somente. Um nome que era poeira, recordação, saudade. Que continuou a ser poeira, recordação, saudade, apesar de um instante inexplicável de magia e de vida. 

Poeira, Recordação, SaudadeOnde histórias criam vida. Descubra agora