23/03/2020 Quarentena dia: 6?
Faz quase uma semana desde que o covid-19 ficou fora de controle, e sequer estamos nos dias estimados para o maior surgimento de casos. A população segue em quarentena, que deveria durar cerca de quinze dias, mas já não se sabe quanto precisará ser prolongada. Não podemos sair desde que não seja absolutamente necessário, todos na rua usam máscaras (mesmo que os médicos recomendem apenas para infectados, somos idiotas afinal) para ter a sensação de falsa segurança. A população idosa é a que mais teme.
Eu, por outro lado, sigo meu estilo de vida normalmente. Nunca fui de ter muitos amigos, a quarentena é a desculpa perfeita pra evitar o esforço de ter contato com os outros. Não que eu não queira, só acho cansativo. Os dias estavam sendo muito solitários de qualquer forma, não posso negar que isso me perturbou um pouco. Mas Amanda (única amizade de infância que consegui conservar), veio passar um tempo. Não sei onde estão seus pais ou o porquê de ter escolhido justo minha casa, mas não quero que ela se sinta mal, logo resolvi evitar fazer muitas perguntas.
A ter por perto ainda me faz bem. Lembro de quando meus pais brigavam, quando eu me machucava, quando passava por alguma desilusão amorosa, ela sempre estava lá. Algumas vezes ela estava mais distante que outras, ela nunca ficava tempo o suficiente para ser questionada a respeito de qualquer forma. O mais engraçado é a atual insegurança dela, talvez sempre tenha sido assim, eu só não tive tempo de notar. Mas ela anda perguntando muito se não me incomodo com ela passando tanto tempo aqui, se não estou entediado, coisas do tipo.
É irônico o quanto Amanda me conhece melhor que ninguém, e eu não sei nada sobre a mesma. Ainda me pergunto como teve a ideia de aparecer aqui tão subitamente. Tenho medo de que se arrependa e perceba que eu não valho a pena... Merda eu não consigo escrever uma frase sequer sem tossir.
Ontem algo estranho aconteceu, não digo estranho do tipo absurdo, nem mesmo desconfortável. Foi só... Novo? Eu passei os últimos dois dias dormindo no sofá, mas ontem em específico, Amanda teve pesadelos, não queria ficar sozinha e sugeriu que eu a "protegesse", eu não a negaria isso. E eu não estou reclamando, é só que, tive pensamentos novos. Até mesmo sentimentos novos, e estou com medo de entender o que eles significam. Eu não entendo que a lógica dela, não de verdade. Não sou capaz de defendê-la de ameaças reais, tão pouco imaginárias.
Isso me fez sentir falta dos velhos tempos, os poucos que passávamos juntos. Ela não era assim tão próxima e íntima, muito menos medrosa. Me lembro de uma vez, logo após uma longa semana de gritos incessantes vindos de meus pais, Amanda entrou pela janela como se fosse a coisa mais simples do mundo. Aquilo nem mesmo fazia sentido, meu quarto era no terceiro andar. Ela insistiu que não tinha medo de cair, mas agora, crescida, não consegue lidar com pesadelos? Quero dizer, nunca nem entendi como conseguiu chegar lá. Nem sei como chegou aqui. Acho que temos a mesma tendência de nos assustar com o que nossa própria mente é capaz de fazer.
Parece clichê, não é? Um jovem qualquer insistindo que seus pensamentos são piores que qualquer mal que o mundo possa oferecer. A questão toda é que eu posso ignorar qualquer coisa que o universo mande para mim (como tenho feito), mas não consigo ignorar a mim mesmo. Por isso escrevo essa porra de diário idiota, meu psiquiatra me obriga. Quero dizer, não obriga, mas tenho medo que desista de mim se eu não fingir que estou tentando.
Certo, já tem muita fumaça nessa casa, eu precisei quebrar o alarme de incêndio para que não chamasse atenção dos vizinhos. Amanda cozinha muito mal, desde sempre. Na verdade, nunca a vi cozinhando. Sempre que estava sozinho em casa e precisava me virar, ela parecia não conseguir interagir direito com absolutamente nenhum utensílio da cozinha, a garota não conseguia pegar uma panela direito, elas sempre caiam.
Hoje por alguma razão, obviamente desconhecida por mim, a garota resolveu cozinhar. Eu não deveria ter deixado, já que nem consigo respirar direito por conta da fumaça, que está até me causando dor de cabeça.
Ao menos está quieta, ela nunca parava de falar e eu não consegui me concentrar para escrever. Amanda sempre falou muito, do tipo para caralho, desnecessariamente. Isso sempre me causou problemas, sempre brigavam apenas comigo, parece que ninguém a ouvia falar. Não os culpo, Amanda sempre foi muito discreta, nunca chamou muita atenção.
Eu ando focando em mim mesmo, mais do que nunca, ando tentando me entender. Sinto que sou mais devagar que as pessoas normais para essas coisas, não consigo amadurecer e isso está me cansando. Não consigo me relacionar, sempre acabo me isolando e não paro de me autossabotar. É difícil seguir a rotina com meus pensamentos me atrapalhando, é quase impossível na verdade. Eu só queria pausar tudo por um tempo e sentar um pouco para pensar a respeito, talvez pensar tudo que eu tenha para pensar e talvez achar conclusões, dessa forma eu poderia viver em paz.
Amanda foi um sopro de ar fresco em um momento difícil, estava me sentindo afogar em mim mesmo. Por mais que a esse ponto eu queira vomitar graças a cagada que ela está fazendo na cozinha, não consigo imaginar como estaria sem ela a esse ponto. Amanda sempre me salva, sempre que preciso. Ou quando acho que sim. Quer dizer, não sempre, em um determinado momento da minha infância, cerca de 8 ou 9 anos, não a vi por meses. Ela deve ter ficado magoada pelas minhas perguntas repetitivas para saber se ela era real. Não me culpo nem um pouco, não é fácil ouvir o tempo todo que sua única amiga não existe.
Fazia tempo que não a encontrava, de novo, até ela vir aqui para passar o tempo e decidir ficar por dias. Como eu poderia negar? Sentia falta da mesma, a amava, aliás, amo. Ela me conhece como ninguém, ainda lembra como gosto do meu café, minha mania de usar a manga do moletom por para cobrir minhas mãos como uma luva, meu "vicio" por qualquer coisa que tenha cheiro de lavanda. Me sinto mal por não saber nada sobre ela, mas sempre que pergunto a resposta é "não é tão importante assim".
Vou precisar parar de escrever, estou me sentindo apagar e preciso estar desperto caso ela se machuque queimando aqueles carvões na cozinha. Pensei em impedir, mas ela parece saber o que faz. E se custar minha vida, não custou realmente nada. Ao menos ela está comigo e está feliz, eu espero.
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Quarentena
NouvellesUma narrativa que eu escrevi durante a quarentena pelo covid-19. Acompanha a escrita do diário do narrador e suas memórias.