Número do Azar - Parte 1

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O café frio, o amargo no final de tudo. Algumas vezes significa nada, mas ali era um prenúncio do que estava por vir em meio ao silêncio e à troca de olhares que nenhuma das duas iria confessar, mas estavam cheios de lágrimas. Era um choro silencioso, perdido em palavras que queriam tomar forma, gestos e também lágrimas. 

E mesmo sem terem dito nada, ambas sabiam que aquilo era um adeus. No significado, no cheiro, no abraço, na forma que as palavras surgiram silenciosamente. Ela encarou a garota que outrora havia preenchido um enorme espaço em seu coração e, tal como um pássaro, abriu a porta para que pudesse voar para longe. Não que já não tivesse feito isso antes, mas agora era definitivo. Ambas estavam livres das amarras do desejo, do toque, da mente. "Não era isso que eu queria?", pensou a outra garota enquanto caminhava em direção à porta. Tudo ali estava fadado ao fracasso. Não havia nada que pudesse ser salvo, exceto as duas se elas soubessem a hora exata de abandonarem o navio. O tal "navio" era um pequeno apartamento no centro do Rio de Janeiro. Guardava diversas lembranças (in)felizes, segredos inconfessáveis e a chama da paixão que se perdeu em algum momento. Estaria perdida debaixo de alguma almofada no sofá como as chaves da porta? Ou dentro de alguma gaveta da cozinha como os sapatos dela? Aliás, como aqueles sapatos haviam parado ali? Algumas coisas na vida são como aquele sapato, você nunca sabe como foram parar ali, mas fica feliz de encontrá-los mesmo em tais circunstâncias. Mas o que seria da vida se não fossem as imprevisibilidades? Como quando ela estava no banheiro fazendo xixi e de repente ouviu a garota que agora estava impassível diante de seus olhos dizer que a amava. Não era um amor qualquer, era o do tipo que tinha urgência, que clamava por uma resposta - ainda que fosse negativa. Era um amor que consumia e sufocava por dentro.

Um amor que não esperou para acontecer, aconteceu ali mesmo, mas já não tinha acontecido diversas vezes em pensamento? E sem perceberem já estavam compartilhando as roupas e uma cama e um pequeno apartamento. Ele tinha o toque azul dela, amante das artes plásticas, gostava de poesias e chá quente no café da manhã. A outra (talvez impassível agora, mas antes...) trazia o calor do verão, o romance da primavera, a familiaridade dos gostos que se confundiam entre beijos e pizzas, pizzas e beijos. Elas não se completavam, mas completavam o porta-retrato em cima da cômoda do quarto ou os sorrisos dos olhares que diziam muito - como agora. Todas aquelas lembranças eram dolorosas demais para ela se demorar ali. Ela pegou o casaco e apertou o elevador. "Eu disse que 9 era o meu número do azar", pensou enquanto apertava o dito número. Embora não fosse muito de acreditar em horóscopo e coisas do tipo, ela não gostava de dar sorte para o azar. Só que o azar aparece quando quer. É inevitável. Não é como uma visita indesejável que você finge que não está em casa. O azar simplesmente entra sem ser convidado. Mas não tinha sido de todo ruim. Pela primeira vez em anos ela estava sentindo o ar fresco da manhã e sentindo uma paz dentro de si. Então, ela pegou o táxi e seguiu rumo ao aeroporto. 


Dentro do apartamento, em meio às lembranças e o cheiro do café recém-preparado, permanecia a outra garota do olhar impassível. Ela tentava entender o que tinha levado àquela situação. Ciúmes? Cobranças? Não. Foi a rotina. O amar havia se tornado rotina. Os "eu te amo" e "sinto sua falta" tinham se tornado os "bom dia" e "boa noite" que não eram ditos. Como as palavras que ficaram perdidas na distância entre as duas. Faltou falar, mas o quê? Mais um "eu te amo"? Ela já sabia. Não sabia? Ela andou de um lado para o outro no apartamento. Parecia um castigo ter que viver naquele lugar repleto de lembranças e gostos e cheiros. Era a mesma sala, o mesmo quarto, a mesma janela para um trânsito impiedoso, mas faltava algo. Tudo parecia menor e sem sentido. O tempo parado dentro do apartamento enquanto a vida corria do lado de fora.

Ela encarou onde a garota tinha estado minutos antes. "Por quê?", a pergunta aparecia em seu pensamento. Ela queria entender, encontrar algum motivo ou pelo menos algum sentido para tudo aquilo. De repente, o nervosismo de descobrir-se apaixonada pela melhor amiga, de se declarar para ela e inesperadamente ser correspondida invadiram o seu corpo como lembranças indesejadas. Ela sentiu o mesmo contorcer, a mesma angústia... de repente, houve paz. O tipo de paz que só se alcança quando se entende algo. "Não era para ser", pensou por fim.

9 HorasOnde histórias criam vida. Descubra agora