O inverno em Amorim era extenso, bastante singular. O vento frio e forte que sacudia as janelas das casas juvenis era irreconhecível perante o das cidades vizinhas. Fora o cheiro que, mesmo comum, era tão apreciável quanto o cheiro dela. E ah, por falar dela, a moça mais linda daquela cidadezinha. Me lembro bem do primeiro dia que tivemos algum contato, por mais singelo que fosse. Me lembro do seu suave toque, do sorriso marcante e dos cabelos encaracolados e castanhos balançando no vento frio e forte que já falara. Afinal, partindo do pressuposto, este vento traz bons sentimentos e lembranças, assim como traz o medo. O medo que eu tive de te perder, o medo que as pessoas em suas sensíveis residências tinham do desastre que podia acontecer, e o medo ( que ainda iríamos ter ) por receber aquela notícia.
Indo por partes, ela. Outubro de 2019, o inverno acabava de começar. Eu, que por sinal me chamo Ramona, havia desistido de uma vida facultativa e seguida do grande sistema capitalista, bem fraco em Amorim. Fui tentar a sorte ajudando minha avó no pequeno mercado da minha vizinhança. Dona Cecília é como a chamam, a única da minha família que conheço e que sei estar viva. Meus pais me deixaram na creche da cidade vizinha, Aluna, e só depois de várias discussões dela com os orgãos governamentais, fui reconhecida como sua neta. Naquele dia, fiquei até mais tarde no mercado e ela foi mais cedo para casa. Ao som de meus dedos batendo na mesa via as famílias vizinhas se recolherem em suas casas, o movimento de carros diminuindo e a cidade se silenciando, afinal, às 19h ela ficava em completo silêncio, parecia até tradição.
Quando me levanto para fechar o mercado, entra ela. O perfume exala o local por completo, tão suave quanto o cheiro de uma rosa. Aparentou não ter me visto, entrou em passos rápidos até as prateleiras de industrializados, pegando dois pacotes de biscoito e levando-os ao caixa. Seu olhar era nervoso. Estava vestida com um agasalho bastante felpudo, calças largas e marrons e uma bota escura, de alguma marca bastante conhecida, haja vista o letreiro dourado. Ela parecia estar evitando me olhar, então me senti um pouco reclusa. Ao lado do caixa, havia um cesto com o dinheiro para doação, em prol da antiga creche da cidade voltar a funcionar. Ao colocar o dinheiro, que podia ser de 5 até 30 reais, o indivíduo colocava o nome dele em uma lista e, para minha felicidade, ela doou. Agradeceu a compra e saiu, um pouco mais tranquila, aparentemente. Quando pisou os pés fora da loja, olhou o céu. A neve ainda não tinha chegado, mas as estrelas com seu resplendor marcavam o céu sombrio daquela noite. Ainda encantada, sorrio e olho a lista com seu nome. Catherine.
Chego em casa e Dona Cecília está lá, em seu bom e velho cigarro assistindo um programa que reprisava músicas da época em que ela era mais jovem. Sorri ao me ver e conta as notícias do dia, já que o intenso movimento do mercado impede nossas conversas.
- Maria comprou um pônei para a filha, um doce, e ainda o nomearam de Eddie, dá para acreditar? - em meio a risadas e a baixa fumaça do seu cigarro.
Tiro meu agasalho, penduro na cadeira ao lado da minha cama e deito, pensando em Catherine. Achava meu nome único, mas esse.. tem um toque a mais. Sempre que olho as pessoas me pergunto, o quão turbulenta ou pacífica pode ser a mente desta. Fico curiosa, ansiosa para conhecê-la. Trabalho em um mercado, vendo várias pessoas passarem por mim e falando apenas um obrigado pelas compras ( isso quando falam ). Mas o que há atrás do comum? Bom, minha mente precisava repousar e no dia seguinte iria trabalhar na trilha turística para idosos da cidade, que não era bem na cidade, mas sim nas montanhas, local de imensos mistérios e lendas que acredite, podem ser verdadeiras.
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ANCESTRAL
Mystery / ThrillerEm meio à neve, às catacumbas, aos deuses, às cidades, aos gritos e a um romance, toda uma história é traçada desde o passado. O futuro será predestinado ou alterado?