Capítulo 1 - Neve

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Acordo, mesmo pesadelo de sempre. O suor é frio e meus pés ainda tremem. No pesadelo, mesmas colinas, mesmo pulsar. Eu, perdida em meio a multidão, esta trajada com máscaras estranhas, angelicais e demoníacas ao mesmo tempo. Vozes atropelando umas as outras e um grande breu em meu coração. Ando desesperada, tentando achar uma saída daquele tormento, mas só ouço gritos, alarmes, vozes desenfreadas em busca de mim, como se eu pudesse as salvar. E aquela luz brilhante, que consigo enxergar em meio aos indivíduos, fica mais distante a medida que eu corro para chegar até ela. Caos. Caos interminável. Nome também da manchete do jornal de hoje, referindo-se a uma suposta tempestade de neve que estaria por vir em aproximadamente cinco dias. Porém, segundo os políticos fajutos da cidade, medidas de contenção já haviam sido tomadas.

O café meio amargo dela me energiza para a futura trilha. Enquanto o sino ecoa no centro da cidade, chamando os idosos para o começo da trilha, arrumo minha mochila para o longo dia que terei. Ao sair, me deparo com o céu nublado, condizendo com a previsão do tempo anunciada no noticiário.

- VAMOS SAINDO! - grito com meu parceiro de liderança Alfred enquanto caminhamos para a saída da cidade.

O breu das nuvens nos acompanha. Intenso martírio percorre meu corpo e pode parecer meio clichê, mas eu senti a famosa sensação de que algo ruim iria acontecer. O caminho de terra perante altos pinheiros ia até uma breve luz no meio das montanhas. E no meio do canto dos pássaros, ouvia fofocas contadas pelos idosos e absolutamente tudo que foi noticiado mais cedo, com comentários do tipo "dá para acreditar?" ou "concordo plenamente". Mas, todo show de horrores precisa de um estopim antes de começar, e foi o que aconteceu. O estrondo. A gritaria. Absolutamente todos os murmúrios. Ao olharmos para trás, a tempestade de neve que chegaria em cinco dias acabava de assolar os arredores da cidade. O breu das nuvens deu início a tempestade e seus raios estrepitosos. Os idosos, desesperados, fizeram uma roda com Alfred e eu corri até minha casa, atrás de Dona Cecília.

Ofegante. Desesperada. A multidão passava ao meu lado gritante. Gritos em busca de ajuda, busca por uma providência divina, a clamência em direção ao céu, que mesmo funesto, poderia ser o lar de um Deus generoso. Chego em casa, quase arrombando a porta. Minha respiração para por milissegundos e volta com um grande suspiro.

- VÓ! TÔ AQUI, ONDE A SENHORA...

O silêncio e um medo inacabável que toma conta da minha alma. A neve havia destroçado metade da casa e ela sumira. Poderia ter ficado em êxtase mas como se não bastasse surpresas naquele dia, em meio a todo o caos, Catherine aparece.

- Moça! Todos estão recolhidos nos confins do fim da cidade, vim ajudar os funcionários no chamado de evacuação, vamos logo!

E em meio a tudo isso, pude sentir um alívio quando a vi. Pernas bambas e uma sensação de conforto me acompanharam quando corri ao lado dela até os confins. Estes construídos desde quando Aluna e Amorim eram uma cidade só. Porém, após uma década de conflitos internos entre os governantes, a divisão foi promovida. Era usado para mantimentos da cidade, desde alimentos a materiais de construção. Haviam lendas sobre lá também, o famoso receptáculo de espíritos, devido a estranha família que ao lado morou. Os confins é esteticamente grande, do tamanho de um bloco de casas, revestido em blocos resistentes, porém antigos. Devido à falta de uso do local, ainda haviam alguns alimentos lá, sendo usados por camundongos.

Quando chego, corro para os braços de Dona Cecília, que me recebe com um sorriso. Seu cheiro suave e suas roupas aquecidas me deixam segura e, enquanto mais moradores chegam, o prefeito vai ao centro para declarar algo sobre tal desastre. Catherine vai para o canto do confim, abraçando seu agasalho ( o mesmo daquele dia, por sinal ), expressando angústia em seu olhar. Seria este o pesadelo? Minha mente estava sinuosa, não sabia o que pensar. Mas, em busca de um feixe de luz ( como sempre ) fui até ela.

- Desesperador, não?

- Acredita em esperança? - ela pergunta.

- Sempre acreditei, mesmo me decepcionando algumas vezes.

- É tudo um jogo. Mais uma desculpa para contentar a população, tudo por votos e dinheiro. Essa cidade sempre teve essa alma contraditória e confinada ao caos, desde os antepassados.

- Entendo. Há quanto tempo mora aqui? - pergunto.

- Dois anos. Me mudei para ficar com minha mãe, precisava de companhia já que meu pai faleceu.

- Meus pêsames. Nunca tinha te visto na cidade, até ontem.

- Sim! Lembro de ti, já havia falado com sua avó algumas vezes. Qual teu nome?

- Ramona, prazer!

- Catherine ao seu dispor.

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O prefeito chega no centro do local e tosse antes de começar a anunciar algo. Vestia roupas formais e estava acompanhado com sua equipe de secretários e enfins. Parecia estar nervoso, afinal, até ele estava abismado com tal situação.

- Antes de qualquer coisa, peço desculpas a civilização por este acontecimento. Não queria que isso acontecesse com nenhum de vocês e peço o máximo de compreensão nesse momento. As portas estão lacradas enquanto a tempestade ainda acontece. Novos mantimentos foram trazidos e quando o tempo estabilizar e Deus permitir, minha equipe será responsável pela recuperação estrutural e econômica da cidade.

- Tanta confiança em algo incerto. Como sabem que algo divino é responsável por tudo isso? - murmura Catherine.

E ela estava certa. Desde que eu era pequena, a população da cidade sempre confiou muito em um deus, por um tempo até em deuses. Runas eram escritas por vândalos na praça da cidade e cultos eram praticados às escuras no meio da floresta, sendo estes os cultivantes de algumas lendas de monstruosidades e espíritos. Antes, quando o centro da cidade não pertencia aos mercadores, havia uma estatueta com o rosto de vários deuses, construída pela antiga civilização que morava aqui há anos atrás, os Arkas.

- Já ouviu falar dos Arkas? - pergunto.

- Vim de uma família deles, sobrenome Arkiul.

Catherine Arkiul. Me surpreendendo mais uma vez.

- Minha bisavó foi uma das últimas que cultivou a cultura deles. Politeístas, acreditando que almas e energias vagavam pela floresta, em busca de proteger aqueles que mereciam. Mas e tu, qual sua crença? - ela pergunta, sorridente, parecia gostar de falar sobre isso.

- Não tenho certeza do que acredito.. nunca tive para falar a verdade.

Minha avó sempre prezou a existência de um deus uno, mesmo sabendo que eu era meio longe desses assuntos teológicos. Muitos acontecimentos em minha vida me fizeram questionar a existência de algo divino. Mortes, injustiças e contradições que transformaram minha mente em um local turbulento.

- Mas, sinto que ainda descobrirei muita coisa.. e até lá, irei viver muita coisa. - respondo.

- Acredito que sim! - ela responde e senta no chão, encostando-se na parede. - Depois de toda essa confusão, vou tentar relaxar um pouco, a tempestade ainda está forte.

Balanço a cabeça em sentido de confirmação e vou ver minha avó. Chegando lá, a enrolo com um cobertor que estava perto e ela sorri para mim.

- Ficaremos bem, flor de lótus, ficaremos bem. - Ela fala, com sua voz suave que funciona como calmante, me tranquilizando perante tudo aquilo.

Mas, como eu disse antes, isso era apenas o estopim. A noite chegou.

ANCESTRALWhere stories live. Discover now