- Acorde, minha flor de lótus, estão servindo o café.
Levanto e olho ao meu redor. Desta vez, não tive pesadelos, apenas sonhos misturados sem nenhum ponto importante. Catherine estava tomando café com uma senhora, supostamente a mãe dela, eram semelhantes, o cabelo aparentava ser algo bem característico da família delas. Ela me vê acordar e acena, sorridente, e eu, sem hesitar, aceno novamente. Eram quase 19 horas, o povo estava recolhido nos cantos dos confins, alguns começando a dormir, enquanto eu, que passei praticamente o dia todo dormindo, estava com bastante energia para passar a noite em claro.
A tempestade ainda estava forte. Alguns basculantes presentes no teto refletia as luzes dos raios e deixavam alguns flocos de neve passarem, além do clássico vento frio. Da última vez que houve uma tempestade nessa intensidade, ainda era pequena, mas fiquei em casa com minha avó, acho que o governo não ligava tanto para isso. Copos de vidro quebravam ao cair no chão e estruturas de material pouco resistente desabavam por completo. O telhado de várias casas, antigos, formados por telhas rústicas de décadas atrás, voavam pelos ares. E ela, com a mesma fala de sempre: " vai ficar tudo bem, flor de lótus". Disse que minha beleza era tão grandiosa e excepcional quanto a desta flor. Embora a presença do verão, Amorim sempre foi uma cidade de clima frio, neve recorrente e ventanias frequentes. Meus colegas da escola se divertiam em dias como esses, fazendo uma roda no meio da sala e contando histórias de terror, algumas conhecidas pelos aldeões da parte rural da cidade.
Mas, por falar em histórias, contarei uma das mais famosas da cidade. Annabolean Creed, o responsável pela criação do fantasmagórico culto de ocultismo escondido na floresta. Mas antes de falar sobre o culto, a divisão. Quando houve a divisão, a oposição, prezando Amorim como metrópole, estava bastante fraca em uma visão socioeconômica. Com isso, Annabolean reuniu cidadãos e criou seu culto numa parte da floresta onde, independente do horário, a luz do sol era escassa. O foco do culto, segundo as diversas fofocas da cidade, era acabar com a divisão e deixar Amorim como única cidade, prepotente e inabalável. Annabolean começou a sequestrar pessoas de Aluna e roubar mantimentos da cidade, procurando minimizar sua força por completo. As pessoas, taxadas de desaparecidas, eram sacrificadas no meio da floresta, em busca de entregar energia ao deus Akon, criado pelo maníaco Annabolean ( fato que só foi descoberto tempos depois ) para fortificação do ideal ocultista. Até que um dia, Washington, prefeito de Aluna, equipou um time de homens com armas de fogo, em busca da total banalização do culto. A caçada foi intensa, a chuva forte deixava o clima macabro e os raios refletiam o metal das armas na copa de arvóres baixas, enquanto as folhas dos enormes pinheiros balançavam com seu esplendor.
Mas, segundo a lenda e a um integrante sobrevivente do time de Washington, o Eddie, quando chegaram no local do culto, todos os ocultistas e pessoas capturadas estavam mortas no chão. A obscuridade ao redor de Annabolean era insana. Suas mãos, ensanguentadas, tremiam e transmitiam a sensação de culpado. As vítimas não tinham mais olhos, seus cabelos refletiam a escuridão daquela noite enquanto abrilhantavam o sangue de seus corpos. Escrituras e runas riscadas por sangue manchavam as paredes rochosas que escondiam o local. E quando tentaram atirar, o mais sombrio da avassaladora história, as balas atravessavam seu corpo, nenhum acerto e nenhum grito de dor. Relâmpagos, raios, sangue e desespero dominavam a mente dos rapazes. E quando um grito é emitido de Annabolean, ecoando com tamanha força que, de forma assustadora, foi ouvido a metros dali, a memória do sobrevivente Eddie apagou-se. O mesmo disse que correu a partir desse momento, olhando apenas para a frente e para a insigne queda de água que estava a acontecer.
E desde aquele dia, Annabolean, Washington e os rapazes do time nunca mais foram vistos. A esposa de Annabolean voltou a usar seu nome de solteira e se escondeu dos oficiais e outros civis, levando sua filha. O sucessor de Washington assumiu o cargo no governo de Aluna e os enterros das vítimas foram realizados em conjunto, deixando as duas cidades em luto e em paz, desde então.
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E voltando para a realidade, levanto para buscar um café. Alguns já haviam dormido, outros em claro apresentando preocupação no abrilhantar do olhar. Sempre achei a noite sombria, mesmo sem tempestade. Sempre fui em busca de algum feixe de luz, uma salvação.. uma esperança. Acho que é nisso que as pessoas se apoiam. Seguro a xícara com cuidado e bebo o café meio amargo que me lembra o conforto de casa e de como eu o queria de volta.
- O café está na medida certa, não é? - Catherine pergunta, chegando ao meu lado, trajada de um manto que vai do seu pescoço aos pés, inteiramente felpudo.
- Sim, me lembra o que tomo em casa, com minha avó.
- Minha mãe prepara um desses também, é como uma terapia.
- Imagino!
E em meio aos raios, relâmpagos, cafés e nós. A tranquilidade repousa, resguarda e conforta. Estávamos, mesmo que por segundos, em paz depois de tudo aquilo. O que não sabíamos é que a tempestade era o menor dos problemas daquele dia.
- PESSOAL, PEÇO A ATENÇÃO DE TODOS! É DE EXTREMA URGÊNCIA - alarma o prefeito, colocando um rádio no centro, com volume máximo, emitindo as notícias de Aluna.
(...) Em meio a toda essa tempestade aos arredores, mesmo Aluna sofrendo apenas com alguns trovões e quedas de energia, encapuzados misteriosos correm pela cidade, saqueando moradias, violentando civis e riscando monumentos com tintas vermelhas, um bando de bastados se aproveitando da situação deplorável! Estado de alerta! Cidadãos de Aluna e regiões vizinhas, PERMANEÇAM EM CASA!
Era isso que faltava. Esse aviso. Conversas paralelas começaram a propagar e o desespero começou a se enunciar. "O que querem de nós?", "quem são eles?", "será que virão para Amorim?", "o famoso culto das histórias está de volta?". O gran finale. A xícara que estava na mão de Catherine cai no chão, derramando o pouco de café que restara e espalhando cacos de vidro pelos arredores.
- D-desculpa. - ela gagueja enquanto ajoelha-se para juntar os cacos.
- Está tudo bem? - pergunto enquanto ajudo à juntar os cacos.
- Sim, apenas me preocupei com a notícia, obrigada por perguntar.
Ela os coloca numa caixa de papelão, que estava sendo utilizada para coleta de lixo e vai até a mãe, que estava extremamente nervosa. Catherine Arkiul, o que estava a acontecer?
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ANCESTRAL
Mystery / ThrillerEm meio à neve, às catacumbas, aos deuses, às cidades, aos gritos e a um romance, toda uma história é traçada desde o passado. O futuro será predestinado ou alterado?