Prólogo

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Quando uma pessoa descobre que possui um câncer em metástase, ou recebeu o diagnóstico de qualquer outra doença grave e incurável, ela também é apresentada aos seus respectivos tipos de tratamento e consequências, mas também ganha uma data de "validade". Afinal aquilo não tem cura. Geralmente ela recebe o consolo do médico que fala dos novas descobertas e futuras esperanças, recebe o conforto de amigos e/ou familiares. E quando o prazo de validade é bem curto, surgem sugestões de procurar agências como a Make a Wish, que realiza desejos e sonhos dessas pessoas (os quais possivelmente seriam impossíveis de serem realizados mesmo que não estivessem doentes), sugestões de largar tudo e irem "viver a vida que nunca viveram" ou até indicações de viagens sem passagens de volta para algum país do norte na Europa, onde a Eutanásia não é um tabu tão grande.

O mesmo não acontece quando você recebe o diagnóstico de um transtorno mental, com o qual você nasceu.

O objetivo aqui não é comparar quem sofre mais ou menos, ou quem merece suporte ou não. Longe de mim falar das dores que só conhecem os que as têm. O ponto da questão é esse: quem têm câncer recebe o olhar de compaixão e até pena, quem é esquizofrênico ou bipolar recebe o olha de desconcerto. A ignorância ainda impera quando se trata de doenças que não podemos ver, tocar ou operar. Embora todos os dias milhares de pessoas, sejam crianças, jovens, adultos ou idosos, recebem o diagnóstico de câncer, dos mais  variados tipos, ninguém é invalidado quando revela isso. Contudo, quando um autista ou TDAH revela seu diagnóstico, é olhado com desconfiança. Ouve coisas do tipo: "Está na moda ser autista", "todo mundo tem um pouco de autismo", "também acho que tenho TDAH", "você está procurando uma muleta para justificar estar sempre desempregado". 

Se a pessoa sofre de depressão costuma ouvir que é: "falta de Deus", "falta de trabalho", "falta de exercício" e "falta de esforço". Seja borderline, transtorno obsessivo compulsivo, ansiedade generalizada ou transtorno dissociativo, antes de qualquer coisa ela precisa "se esforçar mais". Necessita aceitar o diagnóstico (algo que também ocorre com as doenças graves ou terminais) e de lutar para "superar" o problema.  A questão é que a maioria deles, como outras doenças visíveis, ela tem tratamento, mas não cura. Então o indivíduo tem que aprender a conviver com o problema, suas consequências e o preconceito que vem com ela.

Sim, como qualquer outro paciente, ele enfrentará dificuldades do tipo: falta de tratamento adequado por falta de recursos ou especialistas, inúmeros diagnósticos errados (antes de acertar o real transtorno),  tratamentos que não funcionam com ele, remédios que ainda não foram aprovados no seu país, negativas dos planos de saúde e etc. Entretanto, nada mais cruel, que o preconceito. Geralmente nem a família e nem os amigos os veem com os mesmos olhos. A pergunta que paira na cara constrangida de cada um que descobre seu diagnóstico é: ele pode ser uma ameaça à minha segurança? 

A maioria não sente compaixão ou pena. Talvez até sintam pena da família do paciente, mas não dele. Ninguém quer realizar os sonhos que ele provavelmente nunca realizará porque ele não terá dinheiro, não terá amigos ou terá tirado a própria vida nesse longo caminho de aceitação do que não pode ser mudado e somente apenas tratado. Essa pessoa é apenas uma "batata quente" que ninguém quer ter em mãos. Aos poucos esse paciente começa a perceber que está lutando sozinho, pois ao seu redor, a única coisa que as pessoas querem, é que ele seja o problema de outro e não seu. E assim ele é empurrado de parente em parente, de amigo em amigo, de psiquiatra em psiquiatra e de psicólogo em psicólogo, até se sua jornada termine em uma overdose proposital ou não ou em uma queda longa até o chão.

A grande parte dos pacientes que se atrevem revelar seu diagnóstico, perdem por primeiro o emprego e sem ele, como vão pagar o tratamento? O tratamento geralmente envolve medicações caras de uso altamente controlado e que possuem muitos efeitos colaterais. Isso quando a medicação não é experimental. Alguns remédios causam dependência e abstinência ou causam outros problemas de saúde: que podem ir desde a perda de memória e problemas no fígado, até surtos e tentativas de suicídios.   

Assim como o doente de câncer, sua luta é diária, constante e provavelmente seu fim não será muito diferente do "esperado". O apoio é fundamental para que ele consiga sobreviver o máximo de tempo o possível e com qualidade de vida. Afinal, não há cura ainda.  



Julho, Tubarão, Santa Catarina, Brasil.

Yorella puxou mais um pouco do zíper de seu casaco, enfiou as mãos geladas nos bolsos e acelerou o passo para acompanhar o marido. Enquanto caminhavam, ela se perguntava por que justamente no dia em que resolveram visitar a área comercial daquela cidade fez um dos dias mais frios dos últimos dez anos e justo em um ano no qual o inverno estava ameno.

O casal chegou a um cruzamento bem no instante em que o sinal fechou para os pedestres.

— Meu deus... Quatro graus... — murmurou Leonardo olhando para o termômetro de rua. — Fez vinte e nove graus semana passada — resmungou. — Ainda bem que deixamos a Luci com os pais da Elisa.

Ela olhou na direção do termômetro que havia na esquina e prendeu a respiração. Um homem alto, loiro e bem-vestido estava parado próximo e a encarava. Como poderia não reconhecê-lo? Desde que se lembra sonhava com aquele homem. Cresceu com a presença dele quase constante em suas noites, mas ele não envelhecia. Durante a infância, por curiosidade, o seguia de longe e sempre se via em lugares diferentes, onde as pessoas, além de não a notarem, falavam em línguas que ela não compreendia. Hoje, já madura, ainda sonhava com ele, mas nunca o vira fora de seus sonhos.

— É ele... — murmurou.

O homem sorriu para ela e murmurou algo.

— O que disse? — o marido virou o rosto na direção dela.

— Ali! — apontou. — Aquele homem ao lado do termômetro! É ele! O homem que aparece nos meus sonhos desde criança! — exasperou-se.

Leonardo seguiu o dedo dela e fechou o olhos, exalando lentamente. Ele se virou para encará-la.

— Amorzinho... Você já o descreveu tantas vezes para mim que saberia reconhecê-lo facilmente em um grupo de homens. Não há nenhum homem loiro de quase um metro e noventa— disse entredentes. — Olhe... Só há mulheres esperando para atravessar a rua. Não há homem nenhum ali... — sibilou.

A esposa voltou a olhar e ele já não estava ali.

— Leo... Ele estava ali, eu juro... — sussurrou atordoada. — Era ele sim... E...

— Yorella... — interrompeu-a. — Eu já estou cansado dessa história. Acho que você deveria seguir o conselho dos meus pais, deveria fazer terapia ou algo do tipo. Parece que isto... O que quer que cause esses sonhos está piorando. Parece que você tem uma fixação por ele! Você nunca fala de seu passado, de sua família. Já pensou que isso pode ser um trauma?

Ela tentou articular algo para dizer, mas não conseguiu. O medo a deixou muda.

— Agora você está sonhando acordada!

Yorella aguardou a palavra que foi uma constante em sua vida.

— Alucinando! — alterou-se.

Viu-a cerrar os olhos e o seu queixo estremecer. Ele suspirou.

— Você precisa procurar ajuda — prosseguiu. — Olhe só... Brigamos de novo por causa desse assunto. Acho que já chega. Não quero ouvir mais sobre esse homem em nossa casa. Luci tem três anos e não compreende muita coisa, mas ela vai crescer. Não quero você enchendo a cabeça da minha filha com essas histórias.


                                                                                       ᛚ


Quatro anos depois, Yorella ficou viúva.

The Unknown ManOnde histórias criam vida. Descubra agora