3. Duas vezes no meu caminho

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Otto

A semana passou num estalo do tempo. A mãe da filha do demônio, Vera Lúcia, foi me procurar no hospital, mas não a recebi. Após penar por cerca de uma hora, a mulher deixou um cartão de agradecimento, por ter "socorrido" a filha deles. Vera Lúcia foi a única que esteve comigo há oito anos. Se bem que mudei fisicamente, passei a usar barba, mudei o corte de cabelo e fiquei forte. Ela não me reconheceria, tenho certeza. Nosso encontro foi muito rápido na época, mas preferi evitar esse encontro.


Ao menos por enquanto, não quero aproximação com essa família. Eu e Marion, irmã de criação de Milena, estamos reunindo algumas provas para encaminhar à imprensa, sobre a noite do acidente, quando minha mulher morreu ao ir atender um pedido criminoso de João Guerra. Mais cedo, naquela mesma noite, dois homens ligados ao meio político de Brejo Negro morreram por arma de fogo. Essas mortes e o acidente de Milena estão profundamente relacionados, o que só descobri há pouco mais de um ano e, desde então, comecei a planejar o meu retorno. Antes pensava que Milena havia falecido ao ir fazer um parto de emergência... É tudo uma merda mal cheirosa que vai feder mais ainda adiante.


Nesses últimos dias, enfrentei rotinas pesadas. Fiz algumas cirurgias de emergência e cumpri a agenda de outros procedimentos eletivos. Ambos hospitais em que trabalho são públicos. As condições de um são totalmente diferentes do outro. Em Mundo Verde, faço cirurgias de médio porte tranquilamente. Temos alguns leitos de UTI, além de uma estrutura razoavelmente conservada. Já em Brejo Negro, as instalações são fodidamente precárias e só me resta apagar incêndios em meus plantões e realizar intervenções de baixa complexidade.


Sou um cara acostumado a trabalhar sob estresse. Minha formação foi praticamente toda atuando em condições limite. Passei por dois hospitais públicos do Rio, onde vi de tudo. Ainda assim, fico muito puto com indiferenças e descasos. Falta de recursos e estrutura mínima podem significar perda de pacientes e odeio quando acontece no meu turno, ou na mesa de cirurgia. Isso é algo que sempre me choca, por mais frio que demonstre ser.


Luto pela vida. Dos outros. Porque a minha é fodida. Meus amigos dizem que não sei lidar com perdas, mas não me importo. É fácil julgar quando não se tem a porra de uma faca enfiada no peito o tempo inteiro. Sinto-me como uma noite sem fim, sem lua, preso numa tempestade de navalhas que fere a carne, por anos e anos a fio.


Não venha me falar de racionalidade se meu corpo aperta e se contorce, se minhas noites são sessões de tortura. Tenho sono e não consigo dormir. Nunca apago por completo. E quando durmo, às vezes desperto com gritos, choros, tempestades, asfalto, faróis em meu rosto, em pesadelos terríveis, que reproduzem o acidente de carro de Milena, misturando imagens tangíveis, com coisas surreais. Piro.


Faço meu trabalho de maneira meticulosa. Penso em cada movimento que executo, com o intuito de ocupar-me nas pequenas etapas e, assim, afastar toda a merda ao meu redor. Também faço corridas matinais quando posso e treino como um cavalo, até ser levado ao total esgotamento.


Contudo, nada me arranca o coração do peito. Nada.


Fito o horizonte, estreito o olhar. Vai chover pra caralho.


Só nessa sexta-feira, consegui uma folga. Vim comprar materiais de construção, tábuas de obras, portas e janelas, entre outros itens, para concluir a reforma da pequena casa, do sítio que adquiri nas imediações de Brejo Negro. Um lugar onde poderei isolar-me. É bem tranquilo. Um rio rasga o terreno e tem um ponto com uma visão privilegiada para os cânions que dividem Brejo Negro e Mundo Verde, que os moradores da região batizaram de Cordilheira dos Demônios.

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