Onde o sol se esconde

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"A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras"

Eu queria saber se o sol se esconde atrás daquela montanha congelada. Ele sempre vai e demora semanas para voltar, como se esperasse que alguém fosse o buscar. Ninguém nunca vai. O sol é preguiçoso aqui. Os antigos dizem que isso começou há quase duas décadas. Ele não costumava desaparecer, ele passava o dia aqui e a noite dava lugar para a lua. Hoje ele cede seu lugar constantemente.

Às vezes parece que o sol se escondeu na minha vida assim como ele se escondeu no meu mundo.

Olhando para os buracos que minhas pegadas deixam na neve eu observo uma flor que cresceu nesse meio. Mas para algumas formas de vida, ele aparece o suficiente. Continuo meu caminho longo e lento até chegar no lago congelado, a essa altura já estou bem longe da aldeia. Tiro da bolsa os meus patins e sento na neve. O frio não me incomoda. Depois que os calço, coloco todos os meus pertences no chão e me conduzo até o lago. O frio bate em meu rosto e o ar congelado sai de minha boca. Inspiro fundo. Paraliso o ar em meus pulmões. Solto devagar. O primeiro passo é sempre o pior. Fecho os olhos e começo a minha dança silenciosa no gelo. O medo que ele quebre e me jogue na mais pronfunda água gélida é o que me move a continuar dançando. O medo é minha adrenalina. O medo constante me move a ter coragem.

Quando ouço a minha companheira constante rasgando os céus paro de dançar. Ela pousa em uma árvore e eu vou até minhas coisas. Ela me aguarda. Eu unia coragem enquanto a esperava. Fazemos isso uma vez por semana. Um pacto silencioso em prol da sobrevivência. Vou indo até minhas coisas, calço minhas botas novamente e vou atrás dela.

Eu corro com o vento me impulsionando para trás. A neve que vem em meu rosto me cega, mas eu não sinto frio. Minhas pernas doem de tentar correr na neve funda. Mas eu continuo. Quase parando. Mas continuo. Acompanhá-la é uma missão árdua, entretanto, se não o fosse, ela não teria me escolhido para a união. Meus pés latejam a cada passo da corrida incessante. Mas eu continuo correndo.

Ela solta seu típico assobio e pousa em uma árvore. Eu corro o mais rápido que meus pulmões aguentam, tomo impulso e subo também. É um alto pinheiro. Fico ao lado da águia. A neve sobre a folhagem me camufla, pois eu visto propositadamente uma roupagem completamente branca. Prendo a respiração para que nem o som dessa me atrapalhe. Observo. Dois jovens lobos brigam na neve, separados de sua matilha. Um branco e outro preto. Dois inimigos ancestrais. Preparo o arco e a flecha. Eles pesam sobre meus braços. Uma onda de adrenalina percorre meu corpo, sinto-o arrepiar. O fluxo gélido percorre de meu peito até minhas mãos, nesse exato instante a flecha congela. Petrificada. O fluxo gélido sobe a minha cabeça. Começo a respirar lentamente e minha boca seca. Estou sedenta por sangue. Quero matá-los. Quero matar tudo o que estiver ao meu redor. Mataria meus pais, se já não estivessem mortos. Ouço a águia assobiar. Ela ouve o meu pulsar. O sinal está dado.

Atiro.

A flecha certeira finca-se no lobo preto. O branco me observa com temor em seu olhar, como quem implora pela vida. Eu gosto dessa sensação de dizer quem vive e quem não. Confirmo com cabeça para ele ir. Mal se vira e minha flecha é cravada em suas costas, fazendo-o agoniar-se. Uma onda de prazer percorre meu corpo com a cena. Sinto a águia me reprovar.

Pulo da árvore e o impacto com a neve fofa me disperta. Me arrependo. Me arrependo da agonia que causei aos lobos. Me arrependo desejar a morte da minha aldeia. Me arrependo de desejar a morte de meus pais. Isso sempre acontece.

Não sinto nada. Vou andando lentamente até os contrastantes lobos que agonizam. Sua agonia me dá prazer. Um prazer reprimido. Um prazer que seria facilmente julgado. Um prazer que é só meu. Quando chego no lobo branco ele para de convulsionar e finalmente morre. Me dirijo ao segundo lobo. Esse ainda agonizava. Tiro a flecha dele. Finco em seu pescoço. Tiro. Finco. Tiro. Finco. O sangue espirra em minha cara e eu só paro quando ele morre.

- Venha Aila, quando chegarmos na aldeia eu lhe entrego sua parte - Ela me segue como de costume.

...

- Ainda bem que você chegou, estava tão preocupada - Minha tia fala me abraçando e tirando o sangue do meu rosto.

- Não há perigo algum no que faço - Falo com um sorriso angelical. Minha tia costuma dizer que meu sorriso é assim. Cheguei furtivamente na aldeia. Levei os lobos para os fundos da minha casa e a águia me seguiu.

- Esse bicho tem que lhe seguir por todos os lugares? - Minha tia sussurra.

- Não fale assim, ela pode se irritar - Falo fazendo uma carícia debaixo do seu bico. Sigo até a pedra que tem nos fundo da casa. Essa pedra é grande e fica no chão. Jogo os corpos lá. Desembainho minha adaga. Me ajoelho ao lado dos corpos e começo o tratamento. Faço uma incisão na barriga do lobo branco com a adaga e vou cortando a pele. Arranco toda a pele do lobo branco e coloco sobre a pedra. Descasco a pele como quem descasca uma laranja. Ela sai perfeita, sem cortes adicionais. Faço o mesmo processo com o lobo preto. Aila ouriça sua plumagem - Calma, daqui à pouco você terá sua parte - Vejo a impaciência por comida no olhar dela.

Pego o facão de minha tia e começo a separar os pedaços de carne do lobo branco. O lobo preto eu apenas salgo e o estendo em uma vara que fica no teto da casa. Termino de salgar e separar os pedaços que vão ser assados do lobo branco. Jogo um pernil para a Aila. Quando estava indo assar os outros pedaços de carne sinto um calor subindo dos meus pés ao meu rosto. Olho para o horizonte. Depois de três meses o sol ergue-se novamente.

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