Alinfar

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— O sol surgiu no horizonte novamente. É hora de aproveitar para tentar colher o que plantamos e ir fazer negócios na cidade. Afinal, ninguém sabe quando ele partirá — Papa, o ancião daqui, começa suas recomendações para a aldeia enquanto comemos. Os lobos que matei durarão quatro dias por aqui, depois outra pessoa irá caçar. Aila não gosta quando o prato da vez é alguma ave. Mas não temos muita variedade no nosso cardápio, visto que moramos na encosta de uma montanha e próximos ao mar a duas semana de uma viagem incessante à cidade, que fica do outro lado da montanha, o lado mais seguro, o lado onde os Tsunamis afetam em um grau menor. O último tsunami que houve foi a duzentos anos, seguido por uma avalanche a cem anos. Não sei o porquê que moramos aqui. Estão todos sentados em troncos de pinheiros em volta de grandes fogueiras. As fogueiras são dividas por idade para as crianças e idosos e por profissão para os adultos. Papa está na fogueira dos caçadores e comerciantes. Eu sou ambas as coisas, em breve juntarei o que tenho para vender na cidade e comprar mantimentos para aldeia. Aqui todos fazem por todos, se não fosse assim, não sobreviveríamos — Os deuses detectaram o mal disfarçado de bem aqui. Os deuses detectaram o equilíbrio que desequilibrou este lugar. Quando o passado tornar a se repetir saberemos o motivo do desaparecimento do sol. Saberemos o motivo de tanto frio em meio a escuridão. Saberemos o porquê que no dia em que o dia virou noite, o incidente aconteceu.

O incidente é como eles chamam. O incidente foi o dia em que o sol desapareceu. O dia em que as outras crianças da minha idade morreram subitamente sobrando apenas eu. O dia em que minha mãe tentou matar o meu pai. O dia em que meu pai matou minha mãe. O dia em que meu pai foi preso. O dia que minha cabeça fez questão de apagar.

...

Aos poucos a neve vai derretendo, minha longínqua viagem até a cidade de Farley dá-se agora. Levei alguns mantimentos e as duas peles de lobo, uma para vender e outra para costurar em prol de me servir como casaco. Costurar faz bem para passar o tempo durante a noite. Não tenho cavalo, então sempre vou com os meus próprios pés. Não estou indo só, um grupo de comerciantes veio comigo, somos em torno de dez no total. É tudo o que minha aldeia tem. Dez comerciantes. Dez caçadores. Dez agricultores. Eu faço um pouco de tudo e de tudo um pouco. Só preciso caçar uma vez a cada nove semanas, por conta do revezamento que fazemos. Logo, concentro-me em demais atividades, tais como a agricultura, a costura, o ensino às crianças e o cuidado aos idosos. Também faço comida no dia que caço, pois a minha aldeia tem uma forma espiritual de ver as coisas, eles dizem que deve haver um equilíbrio para tudo. Logo, o responsável por tirar a vida de uma criatura, também é responsável por entregá-la aos demais. É uma espécie de carma. Eles dizem também que se deve matar a criatura de uma maneira pacífica e eu... bem... nem sempre é possível. Alinfar é uma aldeia relativamente tranquila com seus 70 habitantes. Sim, é realmente uma aldeia minúscula. Fazemos de tudo por aqui para não necessitar ir à cidade. Muitos jovens mudam-se deixando os mais velhos em vão. Eu não. Meu espírito pacífico me move a cuidar deste lugar. Minha tia diz que eu sou calma demais. Tranquila demais. Nunca preocupada com nada, sempre alheia a tudo. Não sou alheia, só sou quieta. Bom, quieta até certo ponto. Gostaria de ser sempre assim, mas tem algo que acontece comigo na hora de caçar. Algo que eu não gostaria que fosse real. Às vezes meus pensamentos me torturam além do que eu posso pensar.

Caminho tranquilamente rumo à Farley. Trilho a trilha do sol como se ele não fosse desaparecer a qualquer momento. As flores começam a desabrochar ao longo da estrada e o aroma de primavera paira no ar. Aos poucos o dia vai cedendo seu turno para a noite e, quando essa chega, somos acuados a acampar. Os homens vão atrás das madeiras e as mulheres montam o acampamento. Eu cozinho. Quando eles chegam inicio o prato.

...

— Com quem aprendeu a cozinhar? — Larissa fala. Ela é nova por aqui, era da cidade e veio morar com o marido Rafael. Por isso as perguntas, geralmente não perguntamos muita coisa, afinal, todos sabem a história de todos.

— Um pouco com meus pais, mas a maior parte do que aprendi foi com a minha tia.

— Você caça a quanto tempo?

— Eu tinha três anos quando minha mãe começou a me levar para caçar e aos cinco foi minha tia que começou a me levar. Então já fazem quinze anos que eu caço.

— Você tem dezoito então?

— Isso.

— Pretende sair para Farley?

— Não mesmo, gosto da tranquilidade de Alinfar.

— Entendo — Terminamos de comer com mais algumas conversas e eu recolhi os pratos. Depois comecei a tocar em meu alaúde algumas melodias aleatórias para as pessoas descansarem. Eu não costumo cantar, apenas acho relaxante a melodia que as cordas produzem. Penso que não falta nada em seu equilíbrio e que a minha voz desequilibraria essa equação.

Após tocar por uma hora começo a costurar sob a luz da fogueira e do luar. Gostaria muito de possuir um cavalo, assim eu poderia costurar enquanto viajo, sob a luz solar. Contudo eles são bastante raros e a escassez de alimentos que afeta as nossas terras torna inviável a sua criação.

Aos poucos, pacientemente, vou terminando de fazer os acabamentos da minha pele. Escolhi a branca para melhor me camuflar na neve. Minha pele alva combina muito bem com as roupas que visto. A pele de quase todos é assim por aqui, por conta da falta de sol. Não falei, mas possuo albinismo, o qual herdei da minha mãe, entre tanto isso não é tão comum. Minha mãe... aquela que morreu tentando matar meu pai. Nossas semelhanças vão além da cor da pele. Ambas temos sede de sangue.

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