Farley

20 2 7
                                    

O frio é implacável. Meus conterrâneos mal se locomovem na neve. A neblina acompanha nosso caminho. Eu sinto dificuldade de andar, mas não sinto frio. Essa pele de lobo aquece bem. Duas semanas se sucedem. Duas longas semanas com o frio entrelaçando-se ao sol. Ainda é possível vê-lo por detrás das das cortinas feitas por nuvens. No quatorgezimo dia de uma caminhada incansável, Larissa aponta:

— Finalmente, Farley! — Todos ficam mais atentos. É como se um fio de adrenalina percorresse em nossos corpos. Os passos se apressam. O marchar de nossos passos comprime a neve sob nossos pés. Em poucos minutos chegamos aos grandes portões da cidade, ao longe já é observável o alto do castelo.

...

— Quem são vocês? — O guarda que fica na guarita vigiando os portões pergunta.

— Aurora, senhor — Faço uma reverência - Esses são comerciantes, assim como eu, viemos de Alinfar para vender nossos produtos.

— Ah, Aurora — Ele sorri — Faz tempo que não lhe vejo. Boas vendas.

— Obrigada, senhor Aragon — Eu digo sorrindo. Os portões enormes de madeira vão baixando lentamente, abrindo espaço para a nossa passagem.

...

Farley é uma cidade média, mas com mil habitantes. Alguns deles mudam-se para capitais de referência, já outros preferem ficar, assim como eu. Comerciantes das mais diversas aldeias estão vindo para Farley, a cidade está bem movimentada. O amontoamento dos corpos em um só local faz com que o frio não seja sentido durante a neve que cai. Calor humano.

Nos encontramos aqui ao entardecer — Igor fala e todos nós concordamos com o ponto de encontro. Em grupo somos mais fortes. Logo nos dispersamos para nossas devidas atividades. Eu vou rumo a barraca do senhor Wilborn , um velho conhecido meu. Literalmente velho.

— Seu sorriso é doce como a framboesa e resplandecente como o raiar do dia. Fazes jus ao seu nome, mulher.

— Bom dia, senhor Wilborn. Vim trazer uma especiaria especial para o senhor. O senhor está bem?

— Sim, minha querida, apenas com uma dor lombar, parece que vou quebrar no meio.

— Eu posso passar a receita de um creme anestésico caseiro.

— Eu agradeceria muito, minha filha — Pego um pergaminho e começo a anotar os ingredientes. O ancião da minha aldeia conhece os mais variados tipos de medicamentos caseiros. Médicos de diversas regiões vêm estudar o "conhecimento tribal". Eles aprendem conosco e nós aprendemos com eles. Entrego o papiro para ele - Muito obrigada minha filha - Ele diz sorrindo - O que temos para hoje?

— Essa pele de lobo preto.

— Nossa! Eles são bem difíceis de serem apanhados. Isso é peça rara para revenda em alguma alfaiataria. Posso pagar três peças de ouro por este artigo.

— Fechado! — Falo estendendo a mão e ele me entrega as peças de ouro. O salário médio da região são cinco peças de prata mensais. Uma peça de ouro equivale a dez peças de prata. Ou seja, o dinheiro que ganhei hoje é teoricamente o suficiente para sobreviver por seis meses. Mas é claro que não é assim na prática, pois o dinheiro que nós ganhamos deve ser repartido com toda a vila para suprir a necessidade de todos. Todos trabalham, logo todos devem ter suas carências sanadas.

...

Aproximo-me das escadarias da biblioteca. É uma biblioteca pública, todos podem ir e vir, além disso, eles servem comida por aqui, isso para incentivar quem está nas ruas a buscar conhecimento, mesmo que este se dê apenas através de imagens.

Vou indo até o balcão e o bibliotecário me atende.

— Bem-vinda, senhorita Aurora.

— Como vai, senhor Thomas? — Faço uma breve reverência.

— Vou indo muito bem senhorita.

— Bom, vim devolver este livro — Falo colocando o livro "Viagem ao centro da Terra", de Julio Verne, em cima da bancada.

— Ótimo livro para passar o tempo. Qual livro serás agora?

— Ainda não decidi. Estou avaliando.

— Muito bem — Vou até  a outra bancada, a qual possui uma garrafa e vários copos para se pegar café. Pego um pouco e me dirijo às prateleiras. Vou passeando por diverso mundos mágico de literatura. A sereia. A seleção. A luneta mágica. As crônicas de Nárnia e diversos outros.

Me detenho em um mundo.

Em um livro.

A República, de Platão. Esse é o que eu preciso ler agora. Eu leio, interpreto e tento contar da forma mais simplória possível para os meus alunos. Temos crianças de várias idades, entretanto temos poucas. Separamos as turmas por idade. Tem turma que só tem uma pessoa. A minha turma tem crianças de 5 e 6 anos, pois eu peguei o primeiro ano do ensino fundamental. Enfim, de qualquer forma, me detenho no livro. É bom tentar trazer uma certa utopia para a nossa cidade, pois como todas as outras ela tem defeitos.

— É este aqui — Falo para o bibliotecário.

— Assine seu nome aqui — É uma forma de controle dos livros. Assino.

— Bom dia e boa leitura.

— Bom dia e muito obrigada, senhor Thomas.

...

Espero no local marcado para somarmos o dinheiro que ganhamos e podermos decidir o que comprar. Quando todos chegam a contagem gera em torno de trinta peças de ouro. Ou seja, trezentas peças de prata. Ou melhor, três mil peças de cobre. Para sustentar uma família de cinco pessoas por um mês são necessárias cinco peças de prata. Minha aldeia tem setenta pessoas, separando em grupos de cinco equivale a quatorze famílias, arredondamos isso para quinze grupos. Então trezentas peças de prata dividas para quinze famílias dá vinte meses. Ou seja, a aldeia ainda sobrevive com o básico por um ano e seis meses. Separamos o que cada um vai comprar, eu fiquei com o arroz e feijão. Após uma hora volto ao ponto de encontro com os quilos de arroz e feijão.

— Posso te ajudar, Aurora? — Uma voz vinda detrás de mim surge. Me viro e Aragon aparece com seu típico fardamento real.

— Olá Aragon, tudo bem com você? — Faço uma reverência.

— Estou bem e você? — Ele diz.

— Muito bem — Digo sorrindo.

— Então, vai querer ajuda?

— Ah, sim, muito obrigada — Eu entrego os quilos de feijão para ele e fico com os de arroz — Mas eu vou para longe, então daqui a pouco você vai ter que me entregar novamente.

— Na verdade, eu vou para lá também, consegui uma licença, pois a minha mãe está muito doente. Brian me contou. E... eu gostaria de saber... se você quer jantar, não sei, um dia comigo...? — Eu sorrio, conheço Aragon desde a tenra infância, mas quando ele tinha uns dez anos, o tio dele o levou para o treinamento para ele tornar-se um militar. Desde então não nos vimos com a mesma frequência.

Chorei por dias quando Aragon se foi.

Ele foi arrastado e amarrado por seu tio. Pois ele também não queria ir.

Apesar dos esforços das amantes crianças, os adultos impiedosos nos separaram. Entretanto, agora ele estava aí, parado, me convidando para um encontro. Ao me lembrar de nossas pequenas caçadas, de nossas brincadeiras no lago e do apoio que ele me deu quando meus pais morreram, meus corpo se arrepia e meus batimentos se aceleram. Em meio ao frio o meu coração aqueceu-se novamente.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Apr 11, 2020 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

NeveOnde histórias criam vida. Descubra agora