Capitulo I: Rigel

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Durante o dia a dia, não sobrava muito tempo para um descanso verdadeiro. Eu nem sabia se, em algum momento, havia conhecido esse descanso. Talvez os pesos em meus ombros fossem raízes grossas, atreladas demais a mim, não iriam para lugar algum.

Mas de vez em quando, eu tinha o privilégio de acompanhar com os olhos o voo de um pássaro, ou o ronronar de um felino. Presentes infinitos guardados em poucos segundos, que para mim eram suficientes. Sentada em uma sarjeta bastante suja, esperava um som estridente, a sirene de uma escola. Vários pais e várias mães esperavam junto comigo, querendo ver seus filhos pequenos depois de uma manhã de estudos e trabalho. Eu não aguardava um filho, mas um irmão. No auge de seus 10 anos de idade, aquela construção antiga, a escola municipal, era o mais próximo de um lar que ele tinha visto. Lucas não dizia isso, mas eu sabia. Não precisa de muita coisa para ver o coração de uma criança, nada além de uma outra criança interior.

Seria uma caminhada curta, de dez minutos, até a nossa casa. Ironicamente, enquanto me movimentava eu descansava, ou quase. Me atentaria às sombras que as árvores faziam no chão, o som dos sapatos e da mochila de rodinhas sobre o concreto. Esses seriam os segundos infinitos.

- eles estão brigando de novo, né?

Me assustei. Meu irmão estava parado, à minha frente, com o seu cabelo cor de sol bagunçado, e os olhos observadores demais para uma criança.

- por que diz isso, Lu?

- você está usando a sua capa. – ele respondeu, com simplicidade. Não, eu não usava uma capa. Era um cardigã preto comprido e fino demais, adequado somente para manhãs frescas de outono, em que ficamos em casa de pijama. Esse não seria o meu caso hoje, embora fosse uma tarde amena. Lucas chamava o meu casaco de capa. Dizia que era como a capa que tornava Harry Potter invisível. Eu não entendia muito bem, já que os meus problemas continuariam me vendo, onde eu estivesse.

- Vamos pra casa agora. – eu não queria continuar aquela conversa. Tirei a mochila de suas mãos pequenas, e atravessamos juntos a rua. Só precisaríamos andar em linha reta, depois virar para a direita.

- você só usa a sua capa quando eles brigam. – o menino insistiu, sem entender que eu não queria falar sobre as brigas. Realmente, nossos pais haviam brigado de novo. Foi violento e barulhento como sempre. Saí de casa rezando para que, quando voltasse, não tivesse que inventar distrações para acalmar o choro do meu irmão caçula.

- Lucas, escute bem. Quando a gente chegar, vá direto pra o seu quarto, e não saia até eu avisar. Deixa que eu levo o almoço.

Seguimos, então, em silêncio. Ele entendeu que a situação não estava boa. E eu entendi que precisava o proteger.

***

As cores do céu se misturavam às cores que os humanos deixavam, sua marca de poluição. Mas não importava. O sol, imponente, superava qualquer um que ousasse tentar ser mais belo. Um evento único e diário: o pôr do sol me chamava, e eu o seguia.

Sentada no chão do quintal, eu agradecia pelo silêncio. Era muito raro aqui em casa. Sempre tinha alguém gritando, ou uma música sendo tocada na garagem, ou eu mesma tomava conta dos sons com meus instrumentos. Mas nenhuma melodia e nenhuma palavra era melhor do que o silêncio. Absoluto, como o vácuo, neutro como o escuro. E eu já tinha barulho demais dentro do meu peito, era preciso um equilíbrio.

Duas formas emergiram, caminhando para a meia luz. Era meu irmão, e seu quase fiel companheiro, o Senhor Astronauta, um gato acinzentado de olhos laranjas que de vez em quando vinha roubar comida. Mas era manso, e Lucas gostava, então secretamente nós cuidávamos do animal e esperávamos seu retorno quando ele partia. Nossos pais não nos deixavam ter animais, esse era o máximo que podíamos fazer pelo Senhor Astronauta.

O pôr do sol anunciava mais do que a chegada da noite: era a hora da história. Quando eu contava os segredos das estrelas para meu pequeno astrônomo, e lhe dava detalhes até que chegasse a hora do jantar.

- vem aqui, Lu. A história de hoje é legal. 

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⏰ Última atualização: Apr 14, 2020 ⏰

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