2. Caixas Amarelas

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Palavras: 1432

Parte II

Caixas Amarelas

Moçambique, 27 de Agosto de 2019

Querida mãe,

Hoje o céu está levemente nublado, o sol desaparecera à dois longos dias como eu lhe contei ontem. Escrevo novamente hoje, mesmo que eu tivesse prometido que não o faria tão cedo, porque sinto-me profundamente magoada e vulnerável, novamente e lamento que isso esteja tornando-se num padrão. Talvez esteja na hora de eu encarar os factos como eles realmente são.

Preciso lutar minhas próprias batalhas. Aprendi isso de você.

Hoje os meus irmãos voltaram a brigar pelos bens deixados após sua partida. São todos tão egoístas que nunca perguntaram o que era bom para mim ou para o Elliott, a única coisa que realmente importa é quem enche mais seus bolsos. Eu e a avó, assim como Elliott preferimos abster-nos de qualquer opinião, e não lutar batalhas desnecessárias mesmo que de alguma forma sejam importantes.

O importante não é quem vence e sim quem dorme com a consciência tranquila.

Cheguei a dolorosa conclusão que a única coisa que os meus irmãos concordam, é que a avó é uma bruxa, que a culpa da sua ausência é nada mais do que dela, mas eu vejo sabe, eu vejo o quanto ela sofre e sente a sua falta, o quanto ela lamenta por tudo que nos tem acontecido e que ama-nos mesmo não tendo as melhores condições e bem, nós a amamos de volta.

No entanto, você também sabe o que eu penso sobre isso, os únicos culpados são eles, aqueles que deram as costas para a sua doença, que carregaram você de tanta coisa ruim, que levaram você como um peso e hoje eu, meu irmão e minha avó somos o peso. Porém você sabe, eu sou jovem, mas sou uma lutadora. Aprendi com a melhor.

E bem, não trago apenas notícias ruins hoje, pois depois de tanto duvidar de mim, e ouvir dos meus irmãos que não me posso tornar-me na mulher que sempre sonhei ser, decidi correr atrás do meu sonho. Ellitot disse também que se eu quisesse tornar-me numa escritora, eu preciso parar de perder tanto tempo com as cartas que escrevo, diga-me como posso fazer isso se é o nosso único meio de comunicação?

De qualquer forma, sinto-me aliviada por mantê-la a par de todos os recentes acontecimentos e espero voltar a escrever-lhe em breve, desejo todo amor que os céus podem dar e um descanso tranquilo.

Com amor, Charlotte.

Quando a jovem de dezassete anos repetiu seu ritual de puxar o envelope preto da gaveta da cómoda e colocar dentro dele o papel que levara algum tempo depositando seus sentimentos, tirou uma das caixas amarelas de cima do guarda-roupa e abriu-a, sua avó passou pela porta do quarto com algumas roupas dobradas na mão e parou para olhar sua neta. Charlotte congelou com o olhar penetrante da mulher mais velha.

Você precisa parar Lotte, isso não é saudável você precisa afastar-se disso. Repetiu para si mesma.

Um ritual.

A mulher respirou profundamente antes de deixar uma blusa azul na cama da neta e virou-se para deixar o quarto.

—Você não devia estar fazendo isso avó —disse Charlotte, esperando que sua avó lhe tenha escutado.

Sándua virou-se novamente para sua neta, inteligente e sensata, mas nunca esperta o suficiente quando tratava-se daquilo que não era bom para ela. Charlotte havia tomado o péssimo hábito de escrever cartas para sua mãe, filha de Sándua que perdeu a vida depois que seu diabetes levou a um caso raro de câncer nos rins. Infelizmente os médicos haviam detectado o problema tarde demais e Maria Ângela havia morrido bem na frente de Charlotte que cuidava dela, uma vez que seus irmãos estavam sempre ocupados demais.

O hábito de escrever para sua mãe levou Charlotte ao vício que resumia-se em escrever todos dias, por vezes duas cartas por dia ou sempre que sua mente pedia. Sándua sabia que escrever para sua mãe morta fez com que Charlotte se escondesse numa concha, que agora ninguém, nem mesmo Elliot conseguia tirar a irmã de dentro.

—Eu faço das suas as minhas palavras Lotte, você não está magoando apenas a si própria, você me mágoa e fere seu irmão também. Deixe sua mãe descansar.

Charlotte engoliu em seco, respirou fundo. —Avó...

—Não Lotte —disse a mulher mais velha, seu tom não deixava espaço para questionamentos. —Você tem de perceber que permitir seus irmãos afectarem tanto você, faz com que não consigas viver sem sua dose diária de dor, foi duro perder sua mãe e eu sei, ela era minha filha, mas ela se foi e você não pode magoar a si mesma porque está acostumada que os outros façam o mesmo.

—Mas a...

Os olhos da sua avó fitaram os de Charlotte com raiva, medo e preocupação. Ela detestava aquele olhar.

—Pare Charlotte, apenas pare de escrever cartas para sua mãe, ela já não as pode ler meu amor, escreva os livros de que tanto falas, escreva algum texto bonito e o partilhe para seus amigos ou naquelas redes sociais que seu irmão não consegue tirar o nariz —A mulher engoliu, olhos marejados e mãos trémulas. Charlotte quis bater em si mesma. —Eu não posso perder você também Lottie, seus irmãos já me odeiam e só deixam você aqui porque preferem estar cercados de pessoas falsas e merdas que não os ajudam a serem pessoas melhores.

Charlotte arregalou os olhos. Sua avó não falava palavrão, ela na verdade os detestava e repreendida tão fortemente que Elliot quase não podia sentir suas orelhas.

—Eu sinto muito Mbia, eu simplesmente não consigo parar, eu sinto-me nesta constante necessidade de contar a ela tudo que tem acontecido desde que ela se foi -sua voz estava em um fio.

Sua avó caminhou até ela envolvendo-a num abraço quente e que sentia-se como casa. —Eu sei que você sente meu amor, não estou dizendo que você precisa parar de uma só vez, um passo de cada vez, converse com Deus e peça à Ele que entregue seus recados a sua mãe, ao seu irmão e aquele que um dia roubou o seu coração. Você é melhor que isso e sua mãe não gostaria que estivesses tratando a si própria de maneira tão descuidada.

Muaitabassa Mbia, você é um anjo. Mas eu não sei por onde começar, eu...

Sándua sorriu calorosamente para sua neta. —Comece pelas caixas aí em cima, comece se desfazendo das caixas amarelas e depois, vá fazer algumas amizades e escreva seus romances meu amor. Você tem pessoas lá fora e aqui dentro que acreditam em você, então não importa quem são os que não acreditam.

Charlotte piscou, olhos marejados e cheios de emoção. Sua avó estava certa, ela precisava mudar aquele hábito, aquele vício e focar-se no que orgulharia sua avó e sua mãe. Ela começaria sendo melhor para ela e isso significava livrar-se das caixas amarelas e talvez escrever cartas para remetentes que responderiam a elas. Charlotte respirou fundo e sorriu pronta para tentar ser melhor.

Moçambique, 22 de Setembro de 2019

Querida mãe,

Hoje o sol sorriu para mim e finalmente eu sorri de volta, depois de tanto tempo. Eu tenho me livrado das caixas amarelas, dos envelopes pretos e agora, lutando contra meus impulsos que gritam para não escrever para a senhora. Mas você vai perguntar porque eu estou escrevendo essa não é mesmo?

Bem, eu tive um momento de reflexão e decidi que você é minha mãe e nada e ninguém mudará isso. Você sempre viverá em mim, no meu coração e por isso mesmo depois de começar um novo romance cujo título é "O Barão" e além da escola, eu me irei dedicar ao livro e a todos aqueles que merecem o melhor de mim sempre. O que significa que esta carta será queimada depois de escrita, lamento tanto, mas essa é a última das várias que eu já lhe escrevi.

Despeço-me com a promessa de mantê-la sempre em meu coração e nas minhas orações, prometendo ser forte e não deixar que o mal dos outros afecte a minha vida, e o meu humor, não mais. Coisas ruins acontecerão, mas eu prometo ser forte e aguentar, uma vez que sei que as coisas melhores, assim como momentos melhores virão e que há também na minha vida, pessoas maravilhosas e não estarei desamparada. Amo-te mãe, sempre é para sempre.

Com amor, Charlotte.

Glossário

Muaitabassaobrigado em Tewe, um dos vários dialectos falados na província de Manica.

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