Capítulo 1

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Robin,

O sonho era bom.

Seja lá com o que estava sonhando, sei que era bom porque não acordei em um sobressalto no meio da noite, toda suada ou gritando. Acontece algumas vezes.

Hoje, não. Na verdade, é bem provável que eu perdesse a hora, já que meu celular não despertou — maravilha.
Mas tenho um pequeno despertador humano, que nesse momento desfere, sem muito cuidado, cutucões seguidos em meu rosto.

Os dedinhos gorduchos encontram minha narina e abro os olhos, assustada.

— Mamãe... Acoda, mamãe.

— Hum... — Me viro, tentando fugir do alcance de suas mãozinhas.

Acoda, acoda, acoda, acooooooda, mãe.

Coloco o travesseiro sobre a cabeça, minha última tentativa de dormir uns minutos a mais. Óbvio que nada adianta quando está determinado. Ele sobe na cama e parece ter tomado como missão descobrir meu rosto.

— Mããããe... Tá na hora de acodar, dominhoca.

Eu sorrio, reconhecendo as mesmas palavras que costumo usar todas as manhãs para arrancá-lo da cama e, por fim, desisto do sono e descubro o rosto.

Me sento e encontro dois olhinhos verdes me encarando.

— Bom dia, Minduim! — Ele faz uma cara engraçada diante do apelido que lhe dei logo que descobrimos sua alergia a amendoim, quando ele tinha apenas dois anos.

— Quero o cereal do erefante mãe, eu não alcanço.

Claro que ele não alcança. Coloquei propositalmente na prateleira mais alta do armário na cozinha, do contrário Bernardo comeria tudo de uma vez.

Fito a carinha dele, os olhos praticamente implorando, o pijama de leãozinho com direito a touca com juba e tudo, e não resisto. Como sempre.
Me levanto e alongo os braços, antes de calçar as pantufas ao lado da cama e seguir até a cozinha.

Começo a preparar o cereal enquanto vejo Bernardo se pendurando na banqueta até conseguir subir. Ele tem quatro anos, mas ainda é bem pequeno, apesar de muito esperto.

— Hoje eu vou pa escola?

Ergo os olhos para ele outra vez.

— Minduim, você está de férias. A mamãe já explicou que vamos nos mudar de cidade por causa do trabalho da mamãe e para ficar perto da vovó. Você vai pra uma escola nova, assim que as férias acabarem.

Vejo que os olhinhos dele se acendem. Bernardo é apaixonado pela minha avó.

Desde que minha vida mudou há quase cinco anos atrás, me vi sozinha, sem pai ou mãe, sem Derek, grávida e em luto, então eu e minha avó nos aproximamos muito e moramos juntas por algum tempo.

Mas a idade avançada e a morte de seu filho cobraram um preço na mente fragilizada dela. Quando as confusões e os esquecimentos começaram, percebemos isso, ela mesma decidiu se mudar para uma casa de repouso.

Não era o que eu ou Bernardo queríamos, mas infelizmente a alternativa não existia. Eu não podia deixar de trabalhar para cuidar dela, porque preciso sustentar meu filho, vovó não podia ficar mais sozinha e dinheiro para cuidadores simplesmente não existia.

Dessa forma, a casa de repouso veio a calhar. Ela se mudou para uma cidade vizinha e Bernardo e eu ficamos sozinhos.

Desde então, deixo meu filho na escola todos os dias em período integral e trabalho como atendente em uma joalheria de rede, chamada Magic's, no shopping.

Por sorte — não posso dizer que achei ruim — a empresa está em constante expansão, e com a abertura de uma filial em Lagos fui transferida para lá. O que é bom, não temos mais ninguém aqui e poderemos ficar perto da vovó Rute.

O pensamento me faz lembrar que há outra pessoa que mora em Lagos. Alguém que prefiro não reencontrar.

— Hein, mãe???

Só então percebo que me perdi e não ouvi o que disse.

— O que perguntou, filho? — questiono, colocando a tigela de cereal com leite na sua frente.

— Vovó Rute disse que minha outra avó mora lá. Vou conhecer ela?

Ela, a outra avó, já tentou uma reaproximação milhares de vezes, ligações, mensagens e aparições esporádicas no meu trabalho. Todas ignoradas.

Minha mãe nos deixou por outra família, com a qual vive até hoje, e isso resultou no incidente com meu pai e impediu que meu filho conhecesse o seu. Minha vida mudou completamente em cinco minutos.

Que Seja DoceOnde histórias criam vida. Descubra agora