Certa vez ouvi ou li em algum lugar que existiu um homem que lembrava de absolutamente tudo. Tudo o que viveu, sentiu, comeu; lembrava até mesmo dos cheiros. Este memorioso me soou como fruto da imaginação de um grande escritor. Se não me falha a memória, este homem que não esquecia de nada se chamava Funes. Mas me parece que ele era apenas uma personagem de um conto fantástico.
Até onde me consta, Funes o memorioso foi de fato um personagem ficcional, mas para minha surpresa vivi uma experiência que destruiu aquilo que eu tinha como crença na impossibilidade do fantástico e, que por ser de fato fantástico, pode me colocar no grupo de pessoas que serão consideradas muito criativas, ou simplesmente malucas. Gostaria que ao ler meu relato o perceba como algo real, pois eu o vivi. Desculpem se parecer fora do comum, afinal, o que pode ser considerado comum num mundo tão cheio de mistérios?
Há algum tempo estava eu num ônibus em Curitiba quando percebi que um dos passageiros estava um tanto agitado. Ele olhava pela janela em direção a outros veículos, viu as placas e rapidamente virava o rosto para dentro do ônibus. Olhava para as pessoas, fechava os olhos e parecia angustiado. Ele não olhava para todas as pessoas, sempre desviava o olhar e, em alguns momentos olhava para o chão. Ele repetia os mesmos movimentos várias vezes. Sempre como se estivesse angustiado ou no caminho do desespero.
Como eu sempre gostei de observar o comportamento humano, e, por causa deste prazer que para alguns chama-se intromissão, mas para mim é apenas um exercício mental divertido, pensei que como nosso trajeto ainda estava no começo e que se ele, assim como eu, fosse até o ponto final, teríamos muito tempo no ônibus. Sou curioso e nem sempre tão discreto. Por amis que tentasse, não conseguia olhar para outras coisas ou pessoas. Ele era realmente intrigante.
À medida que nos aproximávamos do ponto final e o coletivo ia se esvaziando, percebi que ele se esforçava para ficar calmo e fixar o olhar num único ponto. Mas não conseguia.
Criei coragem, saí de onde estava e sentei-me ao seu lado. Perguntei se estava tudo bem.
- Você sabe ler? Ele perguntou.
- Sim, sei.
- Não sabe. Ninguém sabe. Vocês só veem letras e palavras.
Sua afirmação me deu a sensação de que eu finalmente encontrei alguém que, além de se mostrar arrogante, parecia não ser deste mundo.
- Bem, geralmente ao escrevermos usamos letras e palavras. Portanto, o resultado da escrita é que se lê.
- Seres infelizes e limitados os que pensam assim.
Sua afirmação fez com que minha ideia inicial a respeito deste indivíduo começasse a mudar. Além de arrogante e lunático era grosseiro. Apesar desta minha opinião, meu gosto por leitura e por personagens pitorescos me impediu de levantar e mudar de lugar. Apesar de não estar tranquilo com aquele homem, minha curiosidade e desejo de ver aonde cada história chega, fiquei e tentei uma nova abordagem.
- Qual é seu nome?
- Sebastião.
- Você é daqui?
- Não. E você?
- Eu sou de Curitiba mesmo.
- E eu sou do interior.
- E você está gostando de Curitiba?
- Não. Tem muita coisa para ler e isto é cansativo.
É, este Sebastião não deve ser deste mundo. Em todos os lugares existem coisas para ler. Então respondi:
- Existem coisas a serem lidas em qualquer lugar.
- Neste ônibus e no trajeto até aqui, se eu fosse juntar tudo o que apareceu escrito daria, até aqui 720 páginas. Não! Espere! Agora são 741...
Homem interessante este Sebastião. Além de esquisito é criativo. Conseguiu fazer com que eu quase acreditasse que a informação dada por ele é verdadeira.
- É verdade. Mas é claro que você não acredita. Pense o seguinte: cada página pode ter em média 500 palavras, ou 3850 caracteres e em torno de 50 linhas. Eu li 360.000 palavras ... portanto, 720 páginas. É claro que tive que pensar o que fazer com as placas dos carros. Mas se eu usar o padrão de teclado de um telefone, cada número equivale a um grupo de letras e este grupo às vezes é uma palavra. Se leio o número 5182, vejo a palavra NAVE. Mas ela sozinha não diz muito. E isso acaba sendo indiferente.
- Por que este número leva a esta palavra?
- Não tem outra palavra em português com esta combinação.
Com certeza este tal de Sebastião despertou minha curiosidade. Descobri onde ele morava e passei a frequentar sua casa. Não me surpreendi ao me deparar com pilhas de livros, revistas, folhetos, caixas, bulas, n=manuais de instruções e tantos outros objetos com escritas. Não precisei perguntar. Ele leu minha pergunta no ar e respondeu:
- Sim. Já li tudo. Está na hora de me desfazer disso e procurar novas leituras.
Ele realmente era um homem surpreendente. Lia tudo e o tempo todo. Não tinha censura, apenas lia. No entanto, sua leitura não se limitava a decodificação, ele interpretava, sabia o que os outros leitores não sabiam. Fazia relações entre grandes obras literárias e qualquer outro tipo de texto. O que mais me surpreendeu, ele lembrava de cada palavra de cada página, de cada capítulo e conseguia relacionar ainda as informações. No começo duvidei desta capacidade dele. Mas pegava aleatoriamente qualquer texto ou livro e perguntava o que tinha em tal página ou trecho e ele recitava palavra por palavra!
Eu, sendo um professor e alguém que se considerava um leitor de alto nível, me senti como se fosse um garoto no início da alfabetização. Ele citava filósofos e os relacionava com folhetos de propagandas. Não me sinto capaz de dizer se tudo o que ele falava tinha sentido, mas a propriedade com que falava não deixava dúvidas do seu conhecimento e habilidade.
- Seu nome foi dado em homenagem ao rei português?
- Não. Minha mãe queria um filho para chamar de Tião. Sebastião seria o nome mais adequado. Alguns anos se passaram e não temos mais o Sebastião entre nós. Porém, antes de partir ele recitou um capítulo de Coríntios que ainda não entendo. Por este motivo me junto aos lusitanos mais conservadores, tradicionalistas e religiosos que, como eu, esperam o retorno do Grande Sebastião.
Contei minha história com este homem para muitas pessoas, mas ninguém acreditou. Apesar de eu ter ido à casa daquele grande homem tantas vezes. Na última vez que fui, não consegui achar nada. Diferente dele, esqueço muitas coisas, mas sei que dele nunca vou esquecer.
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Sebastião
Cerita PendekComo seria um homem que não consegue esquecer das coisas que leu ao longo da vida?