O dia estava perfeito para qualquer tipo de atividade ou exercício ao ar livre. Juntei alguns itens na bag e saí com minha bike. O trajeto não era difícil, não havia nem muitos aclives, nem muitos declives. Pensando nisso, coloquei a marcha número 7 - a mais pesada - e botei minhas pernas para trabalharem.
Fazer exercícios físicos nunca foi muito meu ponto forte. Na época da escola, período em que temos uma espécie de contato obrigatório com a educação do corpo, eu era sempre o último a ser escolhido para formar um time de futebol. E, com certa razão, pois eu ficava lá no meio da quadra sem saber exatamente o que fazer. Por isso, adorava dias chuvosos, uma vez que podia ficar dentro da sala jogando xadrez ou qualquer outro jogo de tabuleiro.
Mas a idade acaba chegando, e com ela, uns fios grisalhos ali, umas gordurinhas localizadas acolá, etc. Não podemos controlar todos os efeitos do tempo, mas alguns ainda estão a nosso alcance. Resolvi que iria tentar perder alguns centímetros de barriga e, para tanto, comprei uma bicicleta.
Lá estava eu, então, pedalando na beira-mar de São José. A paisagem era um plus, uma motivação para além da tão sonhada barriga de tanquinho. Enquanto minhas pernas moviam-se para cima e para baixo, a brisa do mar batia em meu rosto, que acompanhava o azul das pequenas ondas.
Quando me dei por mim, já havia percorrido toda a extensão da ciclovia e acabava de adentrar um bairro um pouco mais remoto. Na verdade, tratava-se de uma mistura de parcas residências com uma área industrial. Depois de uns quilômetros de passeio com vários transeuntes, pensei que também seria bom ficar um pouco isolado.
Por isso, escolhi uma daquelas ruas asfaltadas e infinitas, e continuei pedalando. Quando já tinha alcançado um pouco mais da metade da estrada (agora era possível ver o final dela), percebi alguns cachorros reunidos em uma construção abandonada.
De prontidão, eles se levantaram e começaram a latir, vindo em minha direção. Eu, que já houvera sido um "gato escaldado" uma vez, desci da bicicleta e comecei a caminhar lentamente, fingindo que estava tudo bem - dizem por aí que não devemos demonstrar medo para os cães né?
Fazendo da bike o meu escudo, cheguei à esquina e dobrei à direita, na tentativa de me desviar deles e fazer com que os mesmos perdessem o interesse por mim. Um deles era realmente grande e eu não saberia o que fazer se eles começassem a me atacar em bando.
Ao chegar no final da travessa, os cães já haviam parado de latir, mas ainda continuavam ali parados. Não havia como voltar sem cruzar com eles de novo, pois do outro lado havia um rio muito largo. Entretanto, percebi que havia um caminho de pedras que partia da travessa, ladeando o rio e seguindo por dentro do mato alto. Fiquei pensando qual caminho deveria escolher. O receio de ser mordido falou mais alto do que a incerteza do desconhecido, então entrei pelo caminho.
No começo, achei que seria muito tranquilo, pois a largura do caminho era o suficiente para passar um carro. Logo, pensei, aquela rota deveria ser bastante utilizada e de fácil acesso.
Após uns 500 metros, percebi que o caminho estava ficando um pouco mais estreito, pois o mato no meio estava mais alto; já os matos das laterais invadiam o caminho. Mesmo assim, estavam apenas a bicicleta e eu, e isso não seria um problema.
O céu, que antes era um azul bem aceso, agora se tornava em um cinza escuro, enquanto o sol ia se pondo. Eu já não enxergava direito o que havia na minha frente, mas fui salvo pelo gongo, ou melhor, pela tecnologia. Na minha mochila havia um smartphone com lanterna embutida. Não era uma maravilha?
Exatamente quando ia colocar minha mão dentro da bag, escutei um barulho muito forte e rápido no matagal que estava entre mim e o rio. Meu coração, nesse momento, quase pulou para fora da garganta. A primeira coisa que pensei foi em uma cobra, mas teria de ser uma Anaconda para fazer aquele barulho com aquela potência toda! Fiquei paralisado, mas como nada apareceu e o barulho não voltou a acontecer, liguei a lanterna e continuei. Para minha felicidade, percebi que havia pequenos montinhos de fezes de animais, e logo concluí que houvera sido uma capivara (se bem que li na internet que uma mulher, recentemente, havia sido mordida por uma capivara).
Enfim, com a mão direita segurando o guidão e a esquerda apontando a lanterna para o chão a minha frente, segui a trilha. Agora, já não era mais um caminho, mas uma trilha estreita mesmo.
Fiquei extremamente desapontado quando notei que a trilha havia simplesmente desaparecido. Lá longe, eu conseguia ver a avenida. Como era possível aquilo? Parecia bem plausível, quando comecei aquela jornada, que aquilo era uma espécie de trajeto que ligava a avenida ao outro lado do bairro. Mas, ao que tudo indicava, eu estava errado.
O que eu faria agora? Depois de andar tanto, voltar tudo de novo e enfrentar os cães? Não. Imaginei que seria melhor observar com mais cuidado e ver o que havia adiante. Compreendi, graças à luz da lanterna, que a trilha fazia uma curva, mas não era perceptível porque ali o mato estava mais crescido.
Apesar disso, lá fui eu outra vez. Agora, era preciso forçar um pouco mais a bicicleta para poder transpor os obstáculos naturais. Depois de muito mato, subidas e descidas, enfim, estava quase alcançando o final.
Qual não foi meu abalo psicológico quando me deparei com um largo valo, que acompanhava toda a extensão da avenida! Mas não era um valinho qualquer não! Sua largura era tamanha que me era impossível pular para o outro lado, nem mesmo pegando um impulso (se houvesse espaço para correr).
O pior mesmo era o que havia dentro do valo: um esgoto a céu aberto! Não era profundo, pelo contrário, era uma espécie de líquido barroso raso. No entanto, só de olhar para ele, eu já sentia que iria atolar.
Agora, já com pedaços finos de galhos entrelaçados nos pneus da bike, com pega-pegas grudados por toda minha roupa, eu definitivamente não voltaria todo aquele caminho! Era uma questão de honra com minha teimosia!
Agarrei a "magrela" pelo quadro e iniciei a descida do barranco em direção à parte do valo cujo lodo eu imaginava que seria o menos traumático para a travessia. Na tentativa de amenizar os danos, pus a bicicleta na frente e fui empurrando, para servir como alavanca de impulso.
Bem na metade, com meus tênis ainda intactos, dei um salto para a frente, apoiando-me na fiel companheira. Que desastre! Acabei perdendo o equilíbrio e meu pé direito afundou-se no esgoto, mas consegui salvar metade do meu outro tênis. Eu só queria chegar na avenida, então joguei meu corpo e me agarrei no galho mais próximo, segurando a bicicleta para que ela não caísse no esgoto. Ela não só não caiu, como ficou trancada por algum outro galho maldito! O medo já havia evaporado e, em seu lugar, surgia agora um sentimento de raiva impotente.
Larguei a bike onde ela estava e escalei um pouco o paredão íngreme e, aproveitando a pequena fúria que se apoderou de mim, dei um puxão nela e a trouxe para cima da calçada comigo.
Após me recompor daquela situação, notei meu estado deplorável. Precisava dar um jeito naquilo. Minha sorte é que houvera colocado na mochila um pacote de lenços umedecidos descartáveis. Retirei alguns deles e os usei para limpar minhas pernas e mãos, que estavam pretas. Além disso, retirei das roupas aqueles pega-pegas grudentos e limpei o suor do rosto.
O pior de tudo era mesmo os tênis e as meias. Estas, que eram brancas, agora fundiam-se com a noite com sua cor escura de dejetos. Retirei-as do pé e, assim como os lencinhos, joguei-as no lixo. Vesti novamente os tênis fétidos e comecei a andar, empurrando a bike.
Depois de alguns metros, avistei uma torneira no lado de fora de uma empresa. Aproveitei para lavar os pés e tênis, literalmente. Abri a torneira até que o jorro da água ficasse forte o bastante para retirar toda aquela imundície sem que eu precisasse tocar nela. Até que o resultado ficou bom, mas agora precisaria voltar para casa pedalando com os tênis totalmente encharcados!
Percebi, depois que fechei a torneira e comecei a andar, que uma mulher me olhava de um modo estranho, com suas sobrancelhas questionadoras e seu olhar de julgamento. Pela primeira vez na vida senti na pele aquilo que as pessoas em situação de rua devem sentir todos os dias.
Depois disso, voltei para casa, tomei um banho demorado e me joguei na cama. Antes de adormecer, pensei comigo mesmo que jamais sairia de bicicleta outra vez, e que minha "barriga de chope" não era nada se comparada às barrigas das pessoas que não tem o que comer...