Nas asas da liberdade

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— E ele acelera na reta pra ganhar velocidade! – diz empolgado Gustavo ao empurrar a cadeira de rodas com seu irmão. O rapaz sorri feliz por sua saída.

Os rapazes vão até o médico plantonista pra assinar a alta médica de Romeu. Gustavo passa a mão dos cabelos ondulados ansioso por essa assinatura. Seus olhos castanhos acompanham o médico plantonista orientar uma enfermeira no balcão. Logo que percebe a presença dos rapazes o médico os cumprimenta

— Vou assinar logo isso. Parece que vocês estão com pressa – comenta com um sorriso consternado.

— Obrigado por tudo que vocês fizeram por ele. – Agradece Gustavo após pegar o documento com a liberação do seu irmão mais velho.

Os rapazes seguem para o estacionamento. Romeu está vestido com um macacão colorido. Seu irmão vai levá-lo para um salto de asa delta da Pedra da Gávea com seu herói de infância, seu irmão mais velho. Os dois sempre gostaram muito de esportes radicais. Gustavo acompanhava empolgado as competições do irmão. Ele era um garotinho mas ainda guarda na memória as lembranças do rapaz forte e corajoso que Romeu um dia foi. Até que um dia a família descobriu que Romeu é portador do ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), uma doença degenerativa que acomete os neurônios motores. Os neurônios doentes perdem sua capacidade de transmitir impulsos nervosos e, consequentemente, os músculos se atrofiam pois não recebem estímulo dos neurônios motores. Romeu está definhando há anos e Gustavo está a seu lado, cuidando do seu herói de infância. O corpo frágil lembra remotamente aquele jovem de tantas aventuras ousadas. Antes de ter os músculos da fala atrofiados, Romeu esboçou um último desejo: descer de asa delta com o irmão na Pedra da Gávea. E hoje esse desejo será realizado. Nem que seja a última coisa que Gustavo fará pelo irmão. A doença dele não tem cura. A medicina não pode mais ajudar Romeu. Agora é só uma questão de tempo.

Ao chegar no estacionamento Romeu se surpreende. No seu jeito limitado de se expressar ele demonstra surpresa e alegria. Gustavo pegou o carro 4x4 do tio emprestado. Ao colocar o irmão no banco do carona ele se depara com um painel com um volante de mentira. O rapaz franzino esquadrinha o volante de mentira com seus olhos verdes curiosos. Logo pega no volante e finge dirigir o carro.

— E então meu co-piloto? Partiu Pedra da Gávea? – pergunta no seu tom determinado de sempre.

Romeu sorri meneando a cabeça aceitando a "missão" de ser o co-piloto dessa corrida radical.

— Então se segura que essa corrida vai começar!

Como nas brincadeiras de quando era criança e o irmão fingia com ele alguma aventura assim Gustavo fez. Era como se voltasse no tempo e se visse de novo um menino brincando com seu "irmãozão". O passeio até a base da Pedra da Gávea foi muito divertido e animado. Romeu se sentiu vivo de novo. Longe das paredes brancas insossas do hospital.

Ao chegar no início da trilha que leva até seu objetivo final, Romeu é recebido por vários rostos conhecidos. Seus amigos que tantas vezes saltaram de pára-quedas com ele ou saltaram de asas delta ou toparam tantos outros esportes radicais.

— Romeu! E aí meu velho? Como você tá? – cumprimenta o motorista que irá levá-los num jipe até o topo.

Os amigos o cumprimentam; o rapaz responde do seu jeito limitado e demonstra entusiasmo. O motorista que irá conduzi-los chama Gustavo para uma conversa. 

— Você não acha muita loucura fazer isso? Ele tá doente cara. 

— Ele não está só doente, Thi, ele tá morrendo.

— Você tá louco mesmo... Então leva ele de volta pro hospital.

— Você não tá entendendo. Não tem mais jeito... – responde com a voz falhando e continua – Eu só quero realizar o último desejo dele. A única aventura que não conseguiu realizar: saltar de asa delta comigo. Muitos não vão entender mas é meu jeito de dizer que o amo e que jamais vou esquecê-lo. É meu jeito de retribuir tudo que ele fez por mim. Nem que seja a última coisa que eu faça por ele em vida. 

O amigo engole em seco e pergunta:

— Beleza... Ele consegue ao menos andar?

— Ele tá um pouco limitado mas a gente dá um jeito.

Romeu anda arrastando os pés com a ajuda de amigos até o jipe. O grupo de amigos prende o macacão dele nas barras de ferro do veículo e partem pra aventura. Eles sobem pela trilha de terra batida animados, fazendo de tudo para que Romeu se sinta como nos velhos tempos. O rapaz começa a demonstrar um pouco de cansaço mas não se abate. 

Ao chegar ao topo ele tem mais uma surpresa. Seus pais o esperavam chegar com Gustavo, próximos a rampa de descida. Eles dão um abraço apertado no filho por um longo momento. Romeu, sempre afetuoso, retribuí o abraço com entusiasmo. O pai o anima como se fosse seu primeiro salto e diz que vai gravar tudo. Romeu apenas balança a cabeça feliz. O grupo de amigos prepara o equipamento enquanto Romeu espera pelo salto sentado numa cadeira. Chega o momento da grande descida, da grande aventura dos irmãos radicais. Gustavo se aproxima de Romeu com alguns amigos para ajudá-lo a ir até o equipamento.

— "Bora" encarar mais essa "irmãozão"?

O rapaz respira com um pouco de dificuldade olhando pro chão e nada responde.

— Romeu? – insiste Gustavo e seu irmão olha pra ele sorrindo com os olhos marejados.

Gustavo retribuí com um sorriso e o abraça apertado. Seus braços sentem a fragilidade do corpo perdendo a luta pra ELA.

— Então... Você consegue saltar?

Romeu olha determinado pra rampa sob o ombro do irmão e acena com a cabeça decidido. Alguns amigos o ajudam a se prender aos equipamentos de segurança e também se propõe a ajudá-los durante a corrida para o salto. Enquanto os rapazes seguem determinados para o salto com o Sol admirando os aventureiros as pessoas em volta batem palmas para aquela curta corrida. No finalzinho da rampa Romeu se esforça um pouco mais para que consigam saltar.

— Uhul!!! – Gustavo empolgado acompanhado por urros do seu irmão mais velho – Estamos voando "irmãozão"! 

Finalmente os dois realizam o grande salto dos dois irmãos aventureiros. Um momento que Gustavo jamais irá esquecer. Romeu finalmente se sente livre depois de tantos anos preso na cama de hospital. Seu coração acelera com a emoção e pela felicidade de ter seu sonho realizado. De repente Romeu fica em silêncio.

— E aí irmão? Tô pilotando tão bem quanto você?

Gustavo logo percebe a inércia de Romeu e seu corpo balançando discretamente contra o vento. Ele sorri entre as lágrimas da despedida e pela felicidade de ter realizado o último pedido do irmão. Enquanto a asa delta desliza lentamente para o chão a alma do aventureiro acende para o infinito.

Best Seller Brasil 2020Where stories live. Discover now