Uma coisa que eu não conseguia tirar da minha cabeça era a ideia daquelas mãos sujas e grosseiras no meu corpo. Uma coisa que não podia tirar do meu coração era essa pedra que roubava toda a alegria que eu sentia aqui dentro. Em parte, por causa desses dois delinquentes que estavam me seguindo, mas principalmente porque sabia que Lucas não estaria aqui para livrar a minha cara.
Ele nunca mais voltaria para casa.
Eu não sabia o que aqueles garotos queriam comigo, só sei que eu não queria ser assaltada e nem tocada por nenhum deles dois.
Virei o gorro do casaco para cima e continuei descendo a rua 125, mas apertei o passo um pouco mais. Ouvi os garotos que me seguiam aumentarem o ritmo. Os passos deles atrás de mim trituravam o gelo cada vez mais rápido. Meu coração também acelerou.
As ruas em volta estavam agitadas, apesar de tudo. A rua principal do Harlem estava enfeitada nessa noite com aquelas luzes brilhantes e canções de Natal tocando sem parar nos alto-falantes. Eu acho que isso era um plano para te fazer entrar no espírito natalino.
Mas, para mim, isso não significava nada, e quero dizer nada, isso nunca faria com que eu me sentisse no clima do Natal outra vez. Era o fim para mim.
Tinha acabado.
Sem luzes de Natal, guirlandas, enfeites e compras de final de ano. Eu tinha decidido semanas atrás que eu nunca mais seria feliz outra vez.
Porque não era justo.
Não era justo terem roubado de mim quem eu pensei que estaria do meu lado pelo resto da vida. Alguém com quem deveria passar este e muitos outros Natais.
Também era injusto não poder andar na rua 125 sem ser incomodada. Caminhando rápido pela calçada, eu olhava para todos aqueles homens passando. Todos eles mais velhos, e a maioria deles mais pretos do que eu. Era a mais nova por aqui e uma das poucas que se sentia assustada ao andar por esta rua.
Para nós, os irmãos caçulas, um passeio por aqui, mesmo na véspera de Natal, não era nem um pouco relaxante.
Eu me sentia como se estivesse colocando minha vida em risco, simples assim.
Todos esses caras mais velhos viviam num mundo diferente do meu.
Atravessei a rua e me enfiei numa loja de presentes na esquina. Meus "parceiros" esperavam do lado de fora, com sorrisinhos na cara, um deles estava sentado num hidrante, acenando para mim, mexendo os dedos como se eu fosse uma criança pequena num carrinho.
Engoli em seco e me virei para o vendedor.
- Feliz Natal, minha jovem – ele disse. – Quer ajuda para encontrar alguma coisa?
Por um minuto, os olhos do vendedor pararam nos caras lá fora. Ele fez uma careta para os moleques.
Eu vi os dois irem embora e suspirei aliviada. O vendedor passou a mão em um lado da careca.
- Preciso de um presente de natal excelente – eu disse. – Um para a minha mãe e outro para... ahn, a amiga dela. E para o meu pai também. Mas não tenho muito dinheiro.
- Compradora de última hora – ele falou, sorrindo para mim. – Vamos lá. Nós vamos achar o que a senhorita precisa. Sorte sua que estamos abertos tão tarde na véspera de natal... a rua 125 está fechando.
***
A 125 é uma rua longa que vai do rio East, no lado Leste de Manhattan, até o rio Hudson, no lado Oeste. A rua corta todo o bairro do Harlem e é nela que estão as principais lojas e negócios. O Apollo Theather, o edifício Adam Clayton Powell e o Studio Museum estão todos alinhados pela 1-2-5. Se o Harlem fosse um corpo humano, então a rua 125 seria o coração, batendo forte e acelerado o tempo todo.
Não sei o que poderia ser o cérebro do bairro, mas decidi pensar nisso outra hora.
Enquanto voltava apressada para casa, percebi como eram os presentes que havia comprado naquela loja. A mamãe e Rayane ficariam felizes, eu tinha esperança. E papai também ficaria alegre com o seu presente.
Mas as alças da sacola estavam machucando meus dedos.
E assim que troquei a sacola de mão, eu os vi. Do outro lado do asfalto molhado pela neve derretida, aqueles dois moleques mais velhos tinham me encontrado outra vez. Comecei a andar mais rápido percebendo que eles se levantaram para vir até mim. Fiquei feliz quando não os vi mais atrás de mim e fui direto para o meu apartamento.
Cheguei ao prédio onde eu vivia com a minha mãe, passei pela porta de entrada e subi as escadas, porque o elevador estava de manutenção.
Sete fucking andares de escada!
Lá pelo meio da subida, as escadas ficavam na escuridão total. As luzes do andar tinham queimado, o que significava que eu tinha que ter mais cuidado ao subir os degraus no breu.
Estar no escuro obrigava o meu cérebro a se concentrar mais no cheiro, que era basicamente de xixi velho, o cheiro estava tão ruim que me deu ânsia.
Quando levantei meu pé para subir mais alguns degraus, bati em alguma coisa. Era algo grande, mas eu não enxergava por causa da falta de claridade. Logo essa coisa se levanta me fazendo levar um susto.
Me desequilibrei para trás, quase caindo da escada, até perceber que aquele era o Sr. Luís, um velho bêbado. Quando ficava frio demais lá fora, como hoje à noite, às vezes ele dormia nas escadas.
Até as crianças o expulsarem de lá.
Ou os policiais.
- Feliz Natal, bebum – desejei.
- Tenha mais respeito, garota! – ele gritou logo na sequência. – Não sou bêbado, só bebo muito duas vezes no ano...
- É, eu sei, Sr. Luís: quando é o seu aniversário e quando não é seu aniversário.
Já ouvi todas as piadas dele mais de uma vez.
Seu Luís gargalhou como uma bruxa velha na escuridão, e continuei subindo.
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Bom gente, essa é a primeira vez que eu escrevo algo, então, se tiver algum erro ortográfico me perdoem.
Espero que tenham gostado do primeiro capítulo.
Logo mais eu volto, bjs.
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Refúgio em Papéis
Ficção AdolescenteVivenciando o luto em tempos de ódio, como preencher as partes que ficaram faltando dentro de si? Para Helena, a resposta pode estar em Baucci - a cidade imaginária que Helena desenha com seus pincéis e tintas que ganhou da namorada de sua mãe. A ar...