Fuga

15 2 1
                                    




A luz da lua cheia entrava na pequena sala por uma pequena janela, desenhando um feixe azul e revelando um pedaço das pedras do chão, aquela era a única luz do lugar, e seria apenas aquilo se não pelo som de lamentos e o que parecia ser alguém chorando.
Subitamente, a voz de uma garota, jovem e assustada, ecoa no escuro, cortando o silêncio.
-Shi... Eu tenho medo do escuro...
Logo em seguida uma segunda voz, igualmente jovem mas um pouco mais controlada ecoa em resposta.
-Só mais um pouco, Jin...
Depois disso houve um momento de silêncio, os lamentos pararam, o choro também, as pessoas daquela sala pensaram ter morrido, até que o som de chaves abrindo uma porta alertou as duas garotas, a porta se abriu, deixando a luz amarelada de duas tochas do lado de fora entrar na sala revelando as barras de várias gaiolas grandes apenas para crianças, um soldado usando armadura de couro no tronco, calças de tecido grosso e turbante passou pela porta, seguido por uma mulher alta e com forma atlética, de cabelos negros e longos, vestindo trapos cobrindo apenas o seu tronco e com as mãos amarradas, todo o seu corpo visível era coberto de cicatrizes longas e finas, seguida por mais dois soldados, um deles carregava uma tocha consigo, e virou-se para fechar a porta.
-Agora, Jin!
Os três soldados rapidamente olharam para uma das gaiolas, onde haviam duas garotas de rosto idêntico, uma delas cobria os olhos, e a outra esticava a mão direita para frente, segurando uma espécie de esfera de luz, rapidamente ela golpeou a esfera, que explodiu em luz cegante e fez os três soldados quase caírem, a mulher não perdeu nenhum segundo e com a maestria de um lutador nocauteou os três, o primeiro foi com um soco de punhos juntos, os outros dois com chutes no queixo.
Depois de recuperar o fôlego, a mulher fez força com os braços e arrebentou a corda em seus punhos.
-Ótimo trabalho, Jin.
A mulher se ajoelhou diante da porta da gaiola em que as duas eram mantidas, agarrou a fechadura, fechou os olhos e inspirou fundo.
Depois arrancou a porta da gaiola como alguém tirando a tampa de um pote.
Shi e Jin rapidamente saíram da gaiola e puseram-se de pé, não eram mais altas que uma criança de doze anos, mas ainda precisavam se ajoelhar dentro do confinamento.
-O que a gente faz agora?- Perguntou Shi.
-Vocês vão sair por aquela janela, eu encontro vocês de novo no beco.
-Sayori, eu não sei se consigo subir ali...- Lamentou Jin, com a mão no joelho esquerdo.
-Shi vai primeiro, eu te ajudo a subir e ela te ajuda a descer.
Sayori procurou nos bolsos dos soldados, e conseguiu duas adagas, as quais deu uma para cada gêmea.
Shi não fez nenhuma pergunta e começou a subir nas gaiolas próximas à janela, em poucos momentos ela já estava do lado de fora.
-Eu não confio nesse plano... E eu não sei usar uma adaga! Por que a gente não pode fugir com você?
Sayori tomou Jin nos braços e começou a caminhar em direção à janela.
-Vocês vão, mas eu preciso fugir pela porta, não dá pra passar pela janela.
Sayori levantou a pequena garota magra, e lentamente passou metade do seu corpo para fora da janela.
-Pode soltar, eu te seguro.- Disse Shi, do outro lado.
Jin hesitou por alguns momentos, momentos suficientes para Shi saltar e agarrar suas pernas, forçando-a a descer.

Quando as duas já estavam fora da sala, Sayori então foi até os soldados que nocauteou, e segurou com firmeza o queixo de um deles.
-Desculpa por isso... Mas não dá para ter vocês me seguindo.
Com movimentos rápidos e o som de ossos quebrando, Sayori quebrou o pescoço dos três guardas e escondeu os cadáveres em três gaiolas, não antes de roubar a armadura e a espada de um deles, depois, foi até a saída.
-Espera, por favor!
A voz veio de uma das gaiolas, Sayori parou, e na meia luz emitida pela tocha que um dos soldados deixou cair conseguiu distinguir a forma de outra escrava, como ela.
Uma segunda forma emergiu do fundo de mais uma gaiola, seguida por mais três.
-Tire... Tire a gente daqui! Por favor!
Sayori olhou brevemente para os olhos de todas elas.
E hesitou, não conseguiu se mover por um momento.
Sayori olhou para a pequena janela, e soltou um longo suspiro.
-Não dá tempo... Desculpa...
Sem esperar uma resposta, ela saiu pela porta e a fechou atrás de si.
tentando manter sua mente calma ela olhou para o céu sem nuvens do deserto, depois correu até o beco atrás da casa onde estava.


Shi não conseguiu aguentar o peso da irmã e caiu, Jin ficou sem resposta por alguns segundos enquanto as duas estavam deitadas uma em cima da outra.
-Essa foi... Uma péssima ideia...- Gemeu Shi enquanto tentava sair de baixo de Jin.
-Eu sei que meu joelho já não está tão ruim, mas eu ainda não consigo pular dessa altura e cair em pé...
Jin se levantou lentamente, e com certa facilidade pôs-se de pé.
-É... Foi mal...
Shi e Jin eram gêmeas, e se não por diferenças de personalidade e circunstâncias seriam cópias perfeitas uma da outra, tinham treze anos, olhos verdes e eram magras, muito magras, as diferenças começam a aparecer quando se olha para o corpo das duas, jin deixava seus cabelos negros crescerem e já passavam da metade das suas costas, não por falta de vontade ou escolha de estilo, seu cabelo sempre cresceu mais rápido do que o normal, quando cortou pela primeira vez ele cresceu novamente em menos de duas semanas, curiosamente, Shi não compartilhava do mesmo problema, e achava melhor se movimentar com cabelo curto, outra característica que diferencia as duas é que Jin, devido a lesões passadas, manca levemente com a perna esquerda, e Shi, por lesões feitas no mesmo dia, tem uma cicatriz no nariz bastante profunda.
-Para onde vamos?- Perguntou Jin.
-O plano é esperar por Sayori aqui no...
Enquanto Shi explicava, com o canto dos olhos percebeu a luz de tochas lentamente se aproximando por um dos corredores do beco.
-Por aqui... Tem gente chegando...- Ela sussurrou para Jin, enquanto se afastava da luz.
Jin seguiu a irmã com passos rápidos, pelo menos o mais rápido que sua perna permitia, a areia no chão permitia às duas o silêncio de um fantasma, tomaram uma distância de vinte metros do grupo de três soldados que saiu da esquina no beco, os três estavam a caminho da casa de onde as gêmeas haviam fugido, dois dos soldados simplesmente continuaram andando e conversando, mas aquele que estava segurando a tocha parou, ele mantinha a atenção no beco, e pediu para os outros dois enquanto olhava para a pequena janela da casa.
-Vocês! Esperem um pouco.
Os dois soldados pararam e foram até ele.
-O que foi? Achou alguma coisa?
-Tem... Uma marca estranha na areia aqui em baixo...
O soldado carregando a tocha foi até o lugar onde as gêmeas haviam caído, e examinou o chão.
Shi imediatamente percebeu que haviam cometido um erro, e agarrou o braço da irmã, as duas então sumiram na escuridão do beco antes do soldado perceber onde elas estavam.
Pararam apenas quando perceberam a rua extremamente movimentada do distrito comercial da cidade, Jin estava ofegante e sentou na areia para descansar enquanto Shi atentamente observava os arredores.
A cidade inteira era uma grande circunferência cheia de corredores e ruas, era como um enorme labirinto, estes becos foram feitos para facilitar o acesso às áreas mais distantes da cidade, todos os becos tinham a mesma largura, cerca de dois metros, e nunca eram muito bem iluminados, patrulhas de soldados passavam regularmente entre todos eles, e em geral estes becos eram a principal maneira deles chegarem até toda a cidade, Shi e Jin se viram entre uma possível patrulha e a rua mais movimentada da cidade.
-O que... O que a gente faz agora? Eles com certeza estão seguindo a gente...- Disse Shi, ofegante.
-Em último caso a gente luta, Sayori deu pra gente as adagas em caso de algo assim acontecer...- Shi olhou para Jin -... Você ainda consegue usar a sua magia?
-Consigo, no pior dos casos eu ainda tenho uma hora de mana.
-Ótimo, nesse caso não estamos completamente indefesas...
-É melhor você ficar com isso.
Jin ofereceu a adaga que Sayori deu à ela, e Shi prontamente aceitou.
-Por enquanto a gente espera, mas Sayori não sabe que estamos aqui... Em... Em último caso vamos ter que fugir sozinhas...- Disse Shi, com uma expressão bastante séria.
Jin ficou assustada, não suportava a ideia de abandonar Sayori naquela cidade, e também não sabia como as duas iriam conseguir fugir sem a força dela.
-Eu... Eu não acho que isso seria uma opção...- Disse ela, por fim.
-Eu também não acho, mas a última coisa que Sayori quer é a gente dando a vida por ela, se as circunstâncias disserem que sim, então nós vamos fugir sozinhas.
Jin ficou calada, e Shi sentou-se ao lado dela.
-Isso é só se tudo der errado, não se preocupe tanto, Sayori vai nos encontrar aqui, e nós vamos embora juntas.
Houve um momento de silêncio, então Shi se levantou.
-Vamos voltar, se o soldado estivesse nos seguindo ele já estaria...
Shi não conseguiu terminar a frase, pois sentiu um arrepio terrível antes disso, e sinalizou para Jin.
-Ele está chegando, prepare-se!
O beco em que as duas estavam era muito escuro, mesmo estando exposto ao céu do deserto, a luz da cidade ofuscava a das estrelas, e nada além da luz das ruas estava presente, as duas já estavam acostumadas com a escuridão, porém, e conseguiram perceber a dupla de soldados chegando lentamente antes que os dois pudessem percebê-las, eles caminhavam sem nenhuma tocha, sem dúvida estavam procurando por elas.
Shi entrou em pânico imediatamente, e com o surto de adrenalina disparou na direção dos dois, nenhum deles conseguiu perceber a garota a tempo, e rápida como um relâmpago ela saltou na direção do guarda da direita, usando as adagas para escalar o homem como um alpinista escala uma montanha, o soldado da esquerda ficou completamente sem ação enquanto em um segundo Shi escalava o outro em direção a sua garganta, assassinando o primeiro soldado, o elemento surpresa acabou quando o cadáver caiu no chão, pois o soldado ainda vivo tirou uma pedra dos bolsos e a atirou contra a parede, e com o contato a pedra começou a emitir uma forte luz vermelha, completamente banindo todas as sombras do beco, revelando a posição das gêmeas.
-Droga...
Shi não conseguiu tirar as adagas do pescoço do soldado morto a tempo de impedir que o outro sacasse a espada, porém, o soldado não tirou da bainha, transformando a espada em um bastão, antes do soldado tentar golpear com a clava improvisada Shi conseguiu suas adagas de volta e recuou rapidamente para perto de Jin, que estava paralisada no lugar até aquele momento.
-Você... Você matou...
Shi cerrou os dentes e avançou sobre o soldado restante, porém, este já estava preparado e cortou horizontalmente com a espada embainhada, Shi conseguiu desviar do ataque apenas abaixando a cabeça, e a espada cortou o vento, sem nenhuma interrupção Shi continuou em sua investida, passando direto pelo soldado e cortando suas pernas com as adagas, conseguiu apenas cortes superficiais pois o tecido grosso da armadura do soldado impediu a maioria do ataque, antes de Shi se recuperar da investida o soldado já estava preparado para golpear novamente, era mais rápido do que parecia, aproveitando a inércia do ataque anterior o soldado cortou horizontalmente de novo, dando uma volta completa, Shi se ajoelhou e mais uma vez o ataque acertou apenas vento, mas o soldado já havia preparado outro ataque, estava com os braços acima da cabeça pronto para atacar, e desta vez Shi não podia se mexer, em um movimento descuidado havia perdido o equilíbrio, e agora podia apenas observar ajoelhada enquanto os braços do soldado desciam.
Shi foi banhada de sangue naquele momento, pois o soldado havia perdido os punhos antes de tentar o ataque, atrás de si as suas mãos ainda segurando a espada caíram e o sangue jorrou sobre Shi, o soldado primeiramente olhou para os braços, depois para trás, onde Jin estava presa em uma pose com o braço direito esticado, como se tivesse acabado de golpear alguma coisa, em seus olhos o soldado viu brilhar um tipo distinto de horror.
-C... Como...?- Gemeu o soldado.
Não teve tempo de ouvir a resposta, as adagas de Shi já haviam sido enterradas até o cabo nas suas costas, e do mesmo jeito que fez com o outro ela subiu até seu pescoço, assassinando o segundo.
Quando o corpo despencou no chão, Shi precisou de alguns momentos para recuperar o fôlego.
-Shi! Você está bem!?- Gritou Jin, o rosto extremamente preocupado.
-Estou...- Shi arrancou as adagas do corpo do soldado -... Você me salvou, obrigada.
-Esquece isso, olha!
Jin apontou para a rua do distrito comercial, e percebeu que haviam várias pessoas olhando na direção das duas.
Quando seus olhos se encontraram com os da multidão, uma multitude de gritos e pessoas fugindo começou, rapidamente transformando a rua movimentada em deserta, e não demoraram nem mesmo dez segundos até outro grupo de soldados chegar no beco, estes direto da rua, haviam cinco deles, mas estes usavam armadura de ferro, e um deles carregava um escudo parecendo uma parede junto da cimitarra, Shi podia perceber que estes eram muito mais perigosos do que os dois anteriores, as gêmeas não tinham chance.
-O que... São só duas crianças.- O soldado carregando o escudo imediatamente relaxou a postura, e apontou para os outros quatro que o acompanhavam.- É com vocês, com essas roupas só podem ser duas escravas, devem ter fugido do leilão.
-Sim, senhor!- Os quatro responderam, tirando as espadas da cintura, mas sem tirá-las da bainha.
Os quatro então começaram a se aproximar e o comandante nem mesmo entrou no beco, devido ao beco estreito, apenas dois poderiam avançar por vez.
-Jin! Vamos embora!
Shi soltou um grito, e Jin desviou o olhar para a irmã, no mesmo momento o um dos soldados avançou sobre ela, Shi foi muito mais rápida e conseguiu entrar no lugar entre a irmã e o ataque, e empurrou Jin para longe, a espada então acertou em cheio as têmporas dela, e Shi caiu deitada, completamente inconsciente.
-Uma.- Disse o comandante.
Jin estava agora sentada, enquanto a irmã inconsciente estava entre três soldados, o quarto já se aproximava.
Inconscientemente, Jin fez um movimento com as mãos, e o soldado foi imediatamente dividido em dois.
Isto não deu a ela nem mesmo um segundo, porém, pois a posição de trás tomou o lugar vazio no mesmo momento, e o perigo resumiu, Jin fechou os olhos pois precisava de mais um momento para usar sua magia, não podia lutar contra o inimigo na sua frente.
Na escuridão de sua mente, Jin sentiu um vento forte passar por seu corpo, e ouviu o som seco de um golpe no rosto, quando abriu os olhos, viu a forma de Sayori entre ela e os três, o soldado que estava pronto para atacá-la em meio caminho da rua, suspenso dois metros do chão.
Suas roupas estavam rasgadas, e a armadura que havia roubado danificada, mas Sayori estava pronta, e não perdeu um segundo, o soldado que havia nocauteado Shi foi enterrado na parede por um chute no rosto, todos os ali presentes sentiram o impacto do corpo contra as pedras da casa ao lado, o vento limpou a poeira do chão e balançou os cabelos de Jin, havia um deles sobrando, e este desembainhou a espada, gastou um movimento do jeito errado, e foi enterrado na parede oposta, quando o soldado que mandou voando finalmente caiu na rua, o único inimigo sobrando era o comandante, estupefato.
-Jin, cuide de Shi, use a sua magia.
E assim fez Jin, rapidamente correndo até a irmã e a arrastando para longe.
-Quem é você?- Perguntou o comandante.
-Meu nome é Sayori, lembre-se dele quando chegar no inferno.
Com uma onda de choque e um buraco no chão, Sayori lançou a si mesma na direção do comandante rápida como uma bala, haviam cinco metros entre ela e ele, mas Sayori já estava na sua frente em meio segundo, estava mirando na cabeça, pretendia apagar o crânio do homem daquela realidade, mas o homem foi surpreendentemente rápido e conseguiu defender o rosto com o escudo, um som alto como o de um sino ecoou por pelo menos três quadras, e o ele foi arrastado pela força do ataque por cinco metros, não perdeu o equilíbrio e manteve todo o seu espírito, Sayori por sua vez foi jogada para trás pela força do próprio ataque.
-Que tipo de magia você tem, garota? Eu nunca vi nada igual!
O comandante parecia muito animado, e, assim como os outros quatro soldados, tirou a espada da cintura sem tirá-la da bainha, a rua estava agora completamente deserta, o mercador mais corajoso agora expulso pela demonstração de poder, Sayori ficou parada no lugar por alguns momentos, não esperava que o homem conseguisse se defender e usou mais força do que deveria para atacar o escudo, o resultado foi um punho deslocado, tentou o seu máximo para resistir a dor e continuar na luta, o homem percebeu que havia algo de errado na reação da adversária.
-Não imaginava que eu iria conseguir me defender, não é? Garota eu passei por gente pior do que você, não vai conseguir me vencer em um só golpe!
Assim que terminou de falar, o homem disparou na direção de Sayori como um touro, era mais rápido do que Sayori imaginava, e ela conseguiu desviar por pouco, o homem passou por ela e travou as pernas com força o suficiente para nulificar a maior parte da investida e parou logo atrás, logo em seguida atacou Sayori com a espada, Sayori sacou a própria que tinha roubado e aparou o golpe, o homem seguiu o ataque com um chute que Sayori desviou por pular para trás e mais uma vez o homem disparou na direção de Sayori, desta vez ele o fez antes dela conseguir recuperar o equilíbrio, e acertou em cheio arremessando Sayori para o meio da rua.
Um grito agudo pôde ser ouvido naquele momento.
-Eu senti esse!-Disse o comandante.
Sayori foi arrastada pelo chão devido a força do ataque, e só conseguiu se levantar depois de parar, infelizmente o comandante já estava ao seu lado, e chutou sua costela, forçando-a ao chão novamente.
-Agradeça à sua força descomunal o fato de eu não poder te matar agora mesmo, um escravo forte como você vale uma fortuna.
Sayori tentou se levantar mais uma vez, e o homem chutou mais uma vez, movendo-a mais um metro adiante.
-Uma fortuna, você diz?
Esta voz era nova, e surpreendeu até o comandante, que rapidamente virou-se para certificar a fonte.

A fonte da voz era um homem de roupas negras, vestia um sobretudo longo e botas de ferro, tinha cabelos longos que prendia num rabo de cavalo e um rosto neutro, sem expressão, e em seus olhos não era possível ver nenhum sentimento, era como o olhar de alguém muito cansado.

Estava desarmado, mas mesmo assim emanava uma aura de perigo, como um assassino, o comandante deu um passo à frente.
-Quem é você?
-Meu nome é Jacques, eu sou um mercador, e não pude deixar de notar a sua pequena conversa com a moça.
Jacques falava lentamente, palavra por palavra, e sua voz era calma e amigável.
-Está interessado na escrava?
-Mais do que interessado, eu quero levar.
-Normalmente nossos escravos são leiloados, e por sorte sua está acontecendo um agora mesmo, é so seguir a rua.
O comandante apontou para o norte da rua deserta.
-Ah, eu sei do leilão, mas eu nunca me dei bem com tanta multidão, eu pago o dobro pela escrava.
O comandante deu uma risada única, como um latido.
-Tem certeza disso meu amigo? Essa aqui é especial, vale pelo menos vinte e cinco de ouro.-Disse o comandante, com um sorriso de orelha a orelha.
-Eu pago uma de platina.
O comandante parou de respirar por um momento.
-Vendido, é toda sua.
Uma moeda feita de um metal brilhante e branco voou pelo ar e parou na mão direita do comandante, que observou-a sem acreditar, enquanto isso, o homem de sobretudo se aproximou de Sayori, que o observava calada, não conseguia falar, pois não podia reunir o ar nos pulmões para tal.
-Ah, senhor Jacques.
-Sim.- Jacques olhou para o comandante com um olhar neutro.
-A garota parecia estar defendendo duas gêmeas naquele beco, as duas parecem ser muito fortes, uma delas matou um dos meus homens em um só ataque.
-S-sério? E onde elas estão?
-O que vai fazer com Sayori?!
A voz de Shi ecoou pela rua deserta com mais força do que esperado, ela estava se apoiando no ombro de Jin, que estava usando uma espada para manter o equilíbrio.
-São aquelas duas.- Disse o comandante.
Subitamente, duas outras moedas voaram na direção do comandante, que não conseguiu se mover para pegar, estava paralisado pela vista.
-Vocês duas, venham aqui.
Disse Jacques para as gêmeas, que rapidamente correram até Sayori, Shi não foi tão rápida quanto o normal e de fato foi um tanto trôpega, Jin estava ofegante, quando chegaram até Sayori começaram a chorar e a checar se ainda estava viva.
-Hoje eu encontrei três maravilhosas garotas, obrigado por aceitar meu acordo, senhor soldado.
Jacques estava bastante sorridente, e correu até um beco na rua, de onde tirou um cavalo e uma carroça de viagens, e levou até os quatro.
-Já pode voltar para o seu trabalho, senhor soldado, eu me viro daqui.
O comandante escutou o mercador, e foi embora com as três moedas de platina, rindo para si como um louco.
-Ela está muito ferida.
Jacques adotou outro tom e outro jeito de falar, desta vez era mais rápido e firme, como a de alguém confiante no que faz.
Jacques tomou Sayori nos braços, Sayori por sua vez gemeu de dor, tinha costelas quebradas.
-Para onde vai levá-la?!- Gritou Jin desta vez.
-Para a minha carroça, vou poder cuidar dela lá dentro, venham comigo.
As gêmeas prontamente obedeceram, e Jacques levou Sayori até o interior de sua carroça, lá dentro o chão era almofadado, e haviam bancos de tecido e baús cheios de mercadoria, Jacques deitou Sayori no chão de barriga para cima.
-Você, qual o seu nome?- Jacques perguntou para Jin.
-Meu... Meu nome é Jin...
-E Você?
-Shi, a moça se chama Sayori, por favor ajude-a.
-Não se preocupe, é exatamente o que pretendo.- Jacques tinha uma voz bastante calma -Jin, dentro daquela caixa tem um pergaminho com bordas de ouro, pegue para mim, por favor.
Jin olhou para onde Jacques apontava e obedeceu, trazendo o pergaminho.
-Ótimo, agora abra.
Assim ela fez, dentro haviam palavras escritas em uma língua que Jin não fazia ideia de qual era, porém, por alguma razão ainda entendia exatamente o que queria dizer, eram instruções em como usar o pergaminho.
-Ótimo, quando eu pedir, você usa o pergaminho nela, esteja preparada.
Jin cerrou os punhos, e segurou a mão de Sayori, que por sua vez olhou nos olhos de Jin, tentou dizer alguma coisa mas conseguiu apenas tossir, cuspindo uma quantidade de sangue, o que assustou as duas gêmeas.
-Não se exaltem.-Disse Jacques com voz firme- Esteja preparada, Jin.
Jacques foi até o lado direito de Sayori e segurou a sua mão deslocada, e depois de contar até três, colocou-a no lugar novamente, Sayori gemeu com força, o que deixou Shi preocupada.
-Agora Jin, o pergaminho!
Jin não perdeu a compostura, e em um movimento rápido soltou o pergaminho no ar, este flutuou por dois segundos depois queimou em chamas brancas, envolvendo Sayori em uma luz gentil, por cinco segundos a luz continuou até sumir por completo, deixando Sayori para trás, completamente curada, Sayori levantou lentamente, sentindo as pernas e o peito com as mãos.
-Como... O que era aquilo?-Perguntou ela.
-Um pergaminho de cura, o de mais alto grau possível, também, sorte a de vocês eu ter encontrado um nesse mercado.
As gêmeas olharam para Sayori por alguns momentos, depois saltaram sobre ela em um abraço em conjunto.
-Que bom! Eu estava tão assustada... Eu achei que nunca ia te ver de novo...
As duas disseram em uníssono, como uma mente única, Sayori abraçou as duas em resposta, e as três ali ficaram por alguns momentos, até que a carroça começou a se mover, e Sayori olhou para trás, juntando força nos braços.
-Para onde vai nos levar?
Jacques deu meia volta com a carroça e bateu as rédeas, fazendo o cavalo começar a trotar mais rápido.
-Primeiro para a fora desse deserto, depois para a minha casa, lá vocês vão ter um lugar para dormir e pensar no que vem depois.
-Por quê? O que você quer com a gente?
-Primeiro eu quero que vocês durmam, tenho certeza que estão muito cansadas, depois eu explico para vocês.
As gêmeas olharam para Sayori, e talvez pelo fato de estarem sentadas em almofadas, bocejaram, não podiam negar o fato de estarem muito cansadas, passaram a maior parte dos dias anteriores acordadas, e as últimas horas foram as piores do mês.
-Ele tem razão... Vocês duas precisam dormir, já estamos seguras, e ele vai nos tirar daqui.
As gêmeas não conseguiram esconder os rostos felizes, e imediatamente despencaram nas almofadas, não precisaram de mais nenhum momento para entrarem em um sono profundo, foi quase impressionante.
-Você também precisa dormir, foi a que mais trabalhou hoje.- Disse Jacques.
-É... Eu sei...
Houveram alguns minutos de silêncio, em que Sayori ficou apenas ali sentada, estava preparada para reagir a qualquer coisa, e seus ombros estavam tensos.
-São suas filhas?
Jacques olhou para trás para perguntar, deixando o cavalo seguir sozinho.
-S-senhor, o cavalo!
-Não se preocupe com o caminho, olhe para fora.
A carroça já havia saído da cidade, os portões principais ficavam cada vez mais distantes, agora tudo o que havia ao redor delas era a areia do deserto até o limite do horizonte.
-Não tem nada entre aqui e a floresta do leste, lá em Shilvan, é só deixar o cavalo seguir para o oeste.
Sayori olhou para os portões da cidade até eles saírem de vista.
-Finalmente... Nós... Saímos.- Sayori começou a chorar -O senhor tirou a gente de lá...
-Não precisa chorar... Assim você acaba comigo.- Jacques deu um sorriso sem graça.- tecnicamente eu comprei vocês como minhas escravas, mas ninguém se importa com o que acontece depois que uma escrava sai do leilão, então vocês estão livres, eu não vou segurar vocês.
-Por quê? O senhor pagou três moedas de platina pela gente...
-O motivo vai ser meio difícil de explicar... Quando chegarmos na minha casa eu digo, por enquanto eu realmente acho que você devia dormir, eu acordo vocês quando for de manhã.
Jacques voltou a olhar para frente, deixando Sayori sozinha para considerar o que faria, ela então lentamente deitou no chão almofadado da carroça, junto das gêmeas, e depois de alguns segundos, dormiu, sonhou com as gêmeas, as duas usavam roupas bonitas de aparência cara, e estavam felizes, quando acordou, o sol da manhã brilhava sobre o seu rosto, e o som das risadas que ouviu no sonho ainda estava fresco em sua mente, olhou em volta e não conseguiu encontrar as duas, mas pôde sentir o cheiro de comida, ao sair da carroça, viu-se em meio a uma floresta, ao lado de uma estrada de terra, podia ouvir a água de um rio próximo, as gêmeas estavam sentadas ao lado de uma fogueira, onde Jacques, agora sem seu sobretudo, assava alguns peixes em gravetos.
As gêmeas não perceberam Sayori sair da carroça, mas Jacques sim.
-Bom dia! Espero que tenha dormido bem!
As gêmeas imediatamente olharam na direção de Sayori, a gritaram em uníssono.
-Você acordou!
-O que vocês estão fazendo?
-O senhor Jacques pescou alguns peixes, estão quase prontos!
-Entendo...
Sayori foi até a fogueira e sentou-se ao lado das gêmeas para esperar, Alguns momentos depois, Jacques tirou três peixes da fogueira e distribuiu para as três.
-Não comam muito rápido, peixes têm pequenas espinhas afiadas, se vocês engolirem uma vai ser um desastre.
As gêmeas, ao ouvirem isso, paralisaram, olhando para os peixes que tinham em mãos.
Sayori riu.
-É só mastigar um pouco mais, quando sentirem que morderam alguma coisa diferente vocês tiram.
Sayori mordeu o peixe, e depois de alguns momentos tirou da boca uma espinha de peixe, mais alguns momentos depois ela mordeu mais uma vez, e repetiu o processo, as gêmeas entenderam e começaram a comer os peixes, assim como Sayori.
Passaram-se alguns minutos, tempo em que Jacques esteve apenas observando, Sayori percebeu isso, e perguntou.
-O senhor não vai comer?
-Eu já comi, é tudo de vocês.
-T... Tem certeza?
-Tenho, nós já estamos chegando de qualquer forma.
-Entendo.
-Se me permitem dizer, vocês são incríveis, as primeiras pessoas que eu vi fugirem de Dorcan.- Jacques sentou no chão ao lado da fogueira, paralelo às três.- Se não se importarem, poderiam me contar como conseguiram?
As três ficaram caladas por um tempo, mas as gêmeas depois cederam, e começaram a narrar os acontecimentos da noite anterior a partir da hora em que escaparam, quando terminaram, Sayori disse.
-Então foi por isso... Eu sabia que devia ter cuidado daqueles dois...
-Falando nisso, Sayori, você não contou o que aconteceu depois da gente fugir pelo beco.
-Depois de me preparar direito, eu sai da casa e fui para o beco, mas uma patrulha já tinha examinado todo o lugar, e os dois já tinham saído para procurar por vocês, eu tentei falar com o guarda, mas ele imediatamente descobriu quem eu era, parece que não existem mulheres entre a força de soldados daquela cidade, eu cuidei do cara, mas outros três apareceram de outra esquina e eu fiquei presa, um deles foi mais habilidoso do que eu dei crédito e ele me deu uma lição...
-Os becos de Dorcan são muito bem monitorados, eu diria que vocês tiveram sorte por não atraírem mais do que uma patrulha por vez.- Disse Jacques, impressionado.
Sayori consentiu com a cabeça, assim como as gêmeas.
-Enfim, vocês já estão longe de lá.
Jacques olhou para as três, e percebeu uma mistura de preocupação e alívio em seus olhos, por isso resolveu antecipar seus planos.
-O que vocês pretendem fazer daqui em diante?
As gêmeas olharam para Sayori, esperando ela decidir.
-Eu não sei... O plano era sair de Almal e roubar uma carroça, de lá a gente iria até Shilvan, encontraríamos uma vila e depois eu improvisava.
-Vocês podem morar comigo.
As três ficaram quietas por alguns momentos.
-S-sério?- Sayori finalmente conseguiu dizer.
-É, mas com uma condição.
Jacques abriu um sorriso.
-Qual seria?...
-Eu quero adotar vocês.

Experiência e SobrevivênciaOnde histórias criam vida. Descubra agora