Capítulo 4 - Acidente e consequências

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Foi um daqueles acidentes que fazem uma pessoa, mesmo anos depois do fato, estremecer de horror. Envolveu a colisão entre um bonde e um precário ônibus de madeira, e transformou a vida de Frida Kahlo.
Longe de ser um lance de azar único ou isolado, acidentes desse tipo eram
bastante comuns no México, a ponto de serem retratados em inúmeros retablos.
Os ônibus eram relativamente novos na cidade, e por causa disso viviam
abarrotados, ao passo que os bondes agora rodavam vazios. Naquela época, como agora, eram dirigidos com a bravata de um toureiro, como se as imagens da Virgem de Guadalupe penduradas no espelho bastassem para tornar o motorista invencível. O ônibus em que Frida estava era novo em folha, e a camada de tinta fresca dava ao veículo um ar especialmente vistoso. O acidente ocorreu no fim da tarde de 17 de setembro de 1925, um dia depois da celebração do aniversário de independência mexicana da Espanha. A chuva
fina havia dado uma trégua. Os imponentes prédios cinza do governo que margeavam o Zócalo pareciam ainda mais cinzentos e mais austeros que o usual. O ônibus com destino a Coyoacán estava quase lotado, mas Alejandro e Frida encontraram assentos no fundo. Quando chegaram à esquina da Cuahutemotzín com a 5 de Mayo e estavam prestes a pegar a Calzada de Tlalpan, um bonde vindo de Xochimilco se aproximou devagar, mas sem parar, como se tivesse perdido os freios, como se estivesse propositadamente rumando para uma colisão. Na recordação de Frida:

Pouco depois que entramos no ônibus houve a colisão. Antes disso, tínhamos subido em outro ônibus, mas como eu tinha perdido minha sombrinha, descemos para procurar e foi por isso que acabamos entrando no ônibus que me destruiu. O acidente aconteceu numa esquina em frente ao mercado de San Juan, exatamente em frente. O bonde veio se aproximando devagar, mas nosso motorista era jovem e nervoso.
Quando o bonde fez a curva na esquina o ônibus foi prensado na parede. Eu era uma menina inteligente, mas muito pouco prática, apesar de toda a liberdade que eu tinha conquistado. Talvez por causa disso, não avaliei a situação nem o tipo de ferimento que eu tive.

É mentira que a pessoa tem consciência da batida, é mentira que a pessoa chora. Em mim não houve lágrimas. A colisão nos jogou para a frente e um corrimão de ferro me varou do mesmo jeito que uma espada rasga a carne do touro. Um homem me viu tendo uma tremenda hemorragia. Ele me carregou e me deitou em cima de uma mesa de bilhar até que a Cruz Vermelha chegasse.

Quando Alejandro Gómez Arias descreve o acidente, sua voz vira um fiapo monótono e quase inaudível, como se pudesse evitar a lembrança falando dela em voz baixa.

O bonde elétrico com dois vagões aproximou-se bem devagar do ônibus. A pancada foi no meio do ônibus. Lentamente o vagão foi arrastando o ônibus. O ônibus tinha uma estranha elasticidade.
Ele dobrou cada vez mais, mas não rachou de imediato. Era um ônibus com bancos compridos dos dois lados. Eu me lembro de que em determinado momento meus joelhos tocaram os joelhos da pessoa sentada à minha frente. Eu estava sentado ao lado de Frida. Quando o ônibus atingiu o máximo de sua flexibilidade, explodiu em mil pedaços, e o bonde continuou em movimento, despencando sobre muita gente.

Fui parar debaixo do bonde. Frida, não. Mas em meio às hastes de ferro do bonde, o corrimão quebrou e atravessou Frida de fora a fora, na altura da pélvis. Quando consegui ficar de pé, saí de debaixo do bonde. Não tive lesões, apenas contusões. Naturalmente a primeira coisa que fiz foi procurar Frida.

Alguma coisa estranha tinha acontecido. Ela estava totalmente nua. A batida tinha desabotoado suas roupas. Alguém no ônibus, provavelmente um pintor de paredes, estava carregando um saco de ouro em pó. A embalagem rasgou, e o ouro caiu sobre o corpo ensanguentado de Frida. Quando as pessoas a viram, gritaram “La bailarina, la bailarina!’’.
Por causa do ouro polvilhado sobre seu corpo vermelho de sangue, achavam que era uma dançarina.

Eu a peguei no colo — naquele tempo eu era um rapaz forte — e percebi, horrorizado, que ela tinha um pedaço de ferro atravessado no corpo. Um homem disse: “Temos de tirar!”. Ele apoiou o joelho no corpo dela e disse: “Vamos arrancar”. Quando ele deu o puxão, Frida berrou com tanta força que, quando a ambulância da Cruz Vermelha chegou, seu grito era mais alto do que o barulho da sirene. Antes da chegada da ambulância, carreguei Frida e pousei seu corpo na vitrine de um salão de bilhar. Tirei meu casaco e a cobri. Achei que ela fosse morrer.
Duas ou três pessoas morreram no
local do acidente, outros morreram depois.

A ambulância chegou e levou Frida para o Hospital da Cruz Vermelha, que naquele tempo ficava na rua San Jeronimo, a algumas quadras de onde tinha acontecido o acidente. O estado dela era tão grave que os médicos não se achavam capazes de salvá-la. Eles julgavam que ela ia morrer na mesa
de cirurgia.
Frida foi operada pela primeira vez. Durante o primeiro mês não sabiam se ela ia ou não viver.

A menina que corria loucamente pelos corredores da escola feito um
passarinho em pleno voo, que saltava dos bondes e ônibus, de preferência
quando ainda estavam em movimento, agora se viu imobilizada e presa a uma série de gessos e outras geringonças. “Foi uma colisão estranha”, ela disse, “não foi violenta, mas sim bastante silenciosa, lenta, e que machucou todo mundo. E a mim, acima de tudo.”
Frida teve a coluna quebrada em três lugares na região lombar. Quebrou a clavícula, fraturou a terceira e a quarta vértebras, teve onze fraturas no pé direito (o atrofiado), que foi esmagado; sofreu luxação do cotovelo esquerdo; a pélvis se quebrou em três lugares. A barra de aço tinha literalmente entrado pelo
quadril esquerdo e saído pela vagina, rasgando o lábio esquerdo. “Perdi minha virgindade”, ela disse.

No hospital, um antigo convento com quartos escuros e teto alto, os médicos que a operaram balançavam a cabeça, deliberando: será que ela sobreviveria? Voltaria a andar? “Eles tiveram de remontá-la por partes, como se estivessem fazendo uma fotomontagem”, diz um velho amigo. Assim que recobrou a consciência, Frida pediu que chamassem sua família. Seus pais não puderam ir vê-la. “Minha mãe ficou tão impressionada que perdeu a fala durante um mês.

Meu pai ficou tão triste que adoeceu, e não pude vê-lo por mais de vinte dias”, recordava Frida. “Nunca houvera mortos na minha casa.”
Adriana, que agora morava com o marido Alberto Veraza perto da casa azul em Coyoacán, ficou tão perturbada ao receber a notícia que desmaiou; Matilde foi a única parente de Frida a ir imediatamente ao hospital.

Até então afastada dos demais familiares porque a mãe ainda não a perdoara por sua fuga, ela ficou com
a oportunidade de ajudar a irmã mais nova. Assim que leu no jornal sobre o acidente, postou-se ao lado de Frida. Uma vez que morava mais perto do
hospital do que de sua família, ela podia ver a irmã todo dia. “Eles nos puseram numa ala horrorosa. [...] Uma única enfermeira para cuidar de 25 pacientes. Era a Matilde que me animava; ela me contava piadas. Ela era gorda e feia, mas tinha um grande senso de humor. Ela fazia todos no quarto rolarem de rir. Ela tricotava e ajudava a enfermeira a cuidar dos pacientes”.

Frida passou um mês deitada de costas, imobilizada e revestida por gesso, e encerrada em uma estrutura em formato de caixa, mais parecida com um sarcófago.
Além de Matilde, Frida recebia visitas dos Cachuchas e de outros amigos.
Mas, à noite, depois que Matilde e os amigos tinham ido embora, Frida era
atormentada pelo pensamento de que podia ter morrido, de que podia morrer. A morte era uma lembrança de uma vermelhidão salpicada de ouro, de exclamações — La bailarina! — trespassando as lamúrias gerais, de ver, com a clareza impressionante e o desapego apavorante que às vezes acompanham o choque, outras vítimas rastejando debaixo do trem, e uma mulher emergindo das ferragens segurando nas mãos os próprios intestinos. “Neste hospital”, Frida disse a Alejandro, “a morte dança toda noite em volta da minha cama.”

Assim que conseguiu escrever, Frida desabafava seus sentimentos e
pensamentos em cartas a Alejandro, que estava confinado em casa com
ferimentos mais graves do que a palavra “contusão” indicaria. Ela o mantinha informado sobre os progressos de sua recuperação, escrevendo com a mesma mistura de detalhes literais, fantasia e intensidade de sentimento que
caracterizaria o arsenal imagético de suas pinturas. Em suas cartas há notas de humor e alegria, mas que nunca conseguem abafar um refrão mais sombrio: No hay remedio — não há remédio. “É preciso suportar”, ela dizia. “Estou começando a me acostumar com o sofrimento.”
A partir do acidente, a dor e a fortaleza tornaram-se temas centrais em sua vida.

FRIDA KAHLO: Uma BiografiaOnde histórias criam vida. Descubra agora