Primavera I

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Há sempre algo sobre a primavera que o acalma, pelo menos parcialmente. Londres fica especialmente linda nesta época do ano. Há flores multicores por todos os lados e cheiros maravilhosos invadindo seus seios nasais, difundidos com o odor de descargas de carro que ainda são persistentes em uma grande metrópole, mesmo que mil rosas desabrochem simultaneamente.

Sua perna está doendo. Sempre dói nesses dias. Sua bengala faz um som de staccato enquanto ele caminha e ele se ressente disso. Tudo o que ele passou, todas as situações de vida ou morte, todas as conquistas sexuais e amorosas, todos os amigos, tudo é apenas uma pálida memória, apenas uma reminiscência do homem vivo que um dia ele fora, porque hoje, hoje ele se sente morto. Talvez seja isso sobre as flores, sobre a sua vivacidade e sua delicadeza que o atrai. Elas estão ali, abertas, lindas, mas breves, e tão logo elas murcharão e terão servido ao seu propósito. Talvez isso deveria assustá-lo, deveria aterrorizá-lo que ele pense isso sobre si mesmo hoje em dia quase ininterruptamente, que seu propósito foi cumprido e que a bala que encontrou caminho através de sua carne deveria ter findado com sua existência e ter sobrevivido foi um erro, que foi um equívoco ter implorado à Deus por sua vida nos poucos segundos de consciência antes de tudo ficar escuro e quieto.

Se ele for pensar sobre isso de maneira pragmática, não parece realmente errado que ele já tenha murchado como uma rosa, porque se ele fosse comparável a uma flor agora, suas pétalas estariam marrons e secas, seu corpo envergado não conseguindo mais sustentar o peso de sua própria cabeça. Ele sabe que está apenas postergando o inevitável. Uma a uma, suas pétalas cairão e como tudo que é vivo um dia morre, ele também desaparecerá no esquecimento. Talvez ninguém se importe, talvez Harry esteja muito bêbada para notar que ele se foi e ainda talvez, quando seu corpo morto for descoberto em sua kitnet bege, ninguém se surpreenda.

Seu punho aperta na bengala e ele se irrita com os cheiros, com as cores, com as flores e com todas as pessoas sorridentes ao seu redor. Ele apressa seus passos o máximo que consegue e segue em frente em direção à Barts para a consulta com seu fisioterapeuta.

Chegando lá, ele passa por todos os exercícios impostos para seu ombro - não sua perna - porque realmente não há nada de errado com isso, não fisicamente falando. É psicossomático segundo a sua terapeuta. Ele é um médico maldito. E um bom. E isso é engraçado sobre essas coisas, porque ele ​sabe que é psicossomático, ele sabe que sua mente está lhe pregando peças, mas se há algo impetuoso sobre a dor é que não importa o que a causa, ela continua machucando a despeito de suas origens e de toda a gama de conhecimento que você tenha sobre isso, tal como os ataques de pânico e ansiedade que o assola quase constantemente.

É tão inquietante que ele saiba exatamente o que ele está sentindo, desde a sensação de que está em perigo iminente aos suores e taquicardia aos arquejos involuntários de sua respiração. Chega a ser cômico tentar se proteger dentro do seu apartamento estéril de riscos inexistentes quando a coisa mais perigosa ao seu redor para a continuidade de sua vida atualmente é ele mesmo, é sua vontade de pôr um fim à esse patético esboço de si mesmo que ele se tornou.

Ele ainda não sabe se foi a guerra que causou isso ou se foi deixá-la. Porque, oh Deus, ele se sentia vivo, tão vivo lá, mesmo que houvesse tanta morte ao seu redor, mesmo quando suas lágrimas caiam em soluços cruéis quando ele perdia um camarada querido em seus braços e quando ele se sentia verdadeiramente inútil, indefeso, de braços atados diante da visão da vida saindo dos olhos de amigos com quem ele riu e brincou apenas momentos antes.

Mas ele supõe que isso é a vida e em apenas um instante, ela simplesmente não é mais. O que mais dói talvez, é a lembrança de que ninguém importante irá sentir a sua falta, que ele não será nada mais que uma nota de rodapé, um lamento rápido de alguns conhecidos por ter perecido tão jovem. Não há um amor para perder ou para perdê-lo. Não há continuidade de si mesmo, como um filho que sempre lembraria de quem um dia ele foi, mas isso o alivia. Machucar alguém assim, uma criança ou um adolescente que nunca mais seria o mesmo ao perder um pai dessa maneira não era algo do qual ele queria ser culpado.

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