DOMINGO, meses atrás. Bellingham.
Estava deitada em minha cama, as mãos apertando o travesseiro. Podia ouvir os ruídos vindos da sala, minhas irmãs postiças brigando por qualquer bobagem que pouco me importava. Deliberadamente, havia tirado os meus fones de ouvido. Queria escutar. Não, precisava escutar. Podia ouvir minha mãe discutindo com seu novo marido insano e detestável. Ainda não havia identificado o núcleo do desentendimento. Por reflexo, meus olhos vaguearam para a recente marca na porta de meu quarto: a forma de meu aparelho de tocar CD, um amassado redondo, a tinta descascada ao redor. Essa tinha sido a última proeza de meu padrasto indesejado: quebrara meu aparelho de tocar CDs pois acreditava que a música a qual eu costumava escutar fazia apologia a rebeldia e sexo e drogas, coisa que suas duas filhas cretinas não podiam escutar — como se suas queridinhas já não tivessem um pouco de tudo isso fora da porta de nossa residência.
Estava inquieta demais. Não queria ficar ali, na ignorância. As vozes se alteravam mais e mais à medida que o tempo corria. Num rompante, ergui-me e, como ardil, decidi beber água na cozinha — o lugar onde as vozes alteradas se concentravam. Descendo as escadas, vi as irmãs Mary e Grace brigando porque uma tinha usado uma saia da outra sem pedir permissão. Não dediquei minha atenção a elas: meu foco era o que estava acontecendo com minha mãe. E o que quer que fosse, não parecia incomodá-las. Talvez pelo motivo que se tornava mais evidente à medida que eu seguia: o pai delas, Pether, não estava em perigo. Minha mãe, Madeleine, é que estava na guilhotina. Não que isso não fosse necessariamente culpa dela, mas ela era minha mãe e eu tinha que protegê-la. Entrei na cozinha.
Madeleine estava sentada em umas das cadeiras da mesa de carvalho, parecendo encolhida e indefesa como um ratinho branco. Seu cabelo longo, preto e ondulado estava meio bagunçado, seus olhos arregalados e injetados. Ela olhou em minha direção imediatamente quando entrei em seu campo de visão. Pether seguiu o rastro do seu olhar. Ele parecia bêbado, a julgar seus olhos pesados, suas bochechas coradas.
— Você não deveria estar estudando, mocinha?
— Como poderia estudar sob essas condições? A voz de vocês dois é a única coisa que consigo ouvir. O que está acontecendo aqui? — disse, sem desviar dos olhos da minha mãe.
— Isso é assunto para adultos. Saia daqui. Vamos, suba para o seu quarto — apontou para a primeiro andar, com dificuldade de manter o equilíbrio.
— Porque deveria?
— Melissa! — Madeleine exclamou, a voz falhada, como se ela fizesse um esforço muito grande para emitir qualquer coisa.
— Você puxou a sua mãe, garota. Ambas têm que abandonar essas manias detestáveis — ele marchou tropegamente em minha direção, e sua mão agarrou meu braço. — Devem entender onde é o seu lugar.
— Me largue agora, seu pedaço de merda! Você não é o meu pai! — gritei, desvencilhando-me dele.
— Pai, quanto barulho! — Mary se juntou à nossa adorável reuniãozinha familiar.
— Estou cuidando de alguns problemas desta casa, querida. Não se preocupe — ele disse, passando a mão em seu cabelo ralo louro-escuro.
— Essa casa não é sua. De nenhum de vocês — lancei um olhar significativo para Mary, Grace e seu pai. — O único mal aqui são vocês.
— Melissa, pare com isso agora mesmo! — Madeleine me agarrou pelo braço, rebocando-me para a sala. Puxei meu braço, parando no meio do caminho. Ela se virou para me fitar, surpresa — e quase histérica.
— Por que aceita tudo isso? — Lancei um olhar na direção da cozinha. — Aposto que ele chegou bêbado mais uma vez e agora está te infernizando com suas alucinações.
— Depois conversamos sobre isso, querida. Agora, vá para o seu quarto.
— Não.
— Melissa, por favor — Madeleine arregalou os olhos marejados, soluços emergindo de sua garganta.
— Você ainda está aqui? — Pether gritou, a voz esganiçada. Ele se apoiava às paredes enquanto se arrastava.
Assumi o papel de espectadora quando ele me agarrou pelo braço, apertando-o em sua palma com muita força. Fiquei olhando para minha mãe, que tinha caído de joelhos ao chão, lágrimas escorrendo por seu rosto. Assisti sua imobilidade, sua falta de iniciativa, enquanto um alcoólatra estúpido maltratava sua única filha, tratando-a feito lixo — como sempre fazia. Tudo isso parecia uma cena de um filme de drama ruim, passando em câmera lenta diante de meus olhos. Lágrimas ameaçaram irromper dali, preenchidas com a mais pura raiva, indignação. Quando chegamos ao meu quarto, Pether me lançou com força sobre a cama. Tirei as mechas de cabelo que tapavam a minha visão e o fitei, cheia de repulsa.
— Você é um grande filho da puta.
Pether virou-se para me fitar, como se não acreditasse no que acabara de ouvir. Neste exato momento, Madeleine apareceu à porta — e só. É claro que ela não teria coragem suficiente que a impulsionasse a dar mais um passo sequer. As mãos de Pether se fecharam em punhos, trêmulas, os ombros elevados. Sua cara estava numa máscara de fúria, que certamente seria despejada sobre mim.
— O que disse? — Ele começou, lentamente. Sua voz era violenta.
— Eu disse que você é um grande filho da puta!
E no exato momento em que repeti aquelas palavras, ele me acertou com um tapa no rosto. Caí pesadamente sobre a cama mais uma vez. Madeleine engasgou um gemido, levando as mãos à boca. Mas como esperado, ela simplesmente ficou ali, assistindo, acorrentada pelo medo.
— E não saia daqui até que eu diga que pode — e foi embora, dando um encontrão em Madeleine. Ela correu para a minha cama, sentando-se ao meu lado. Puxou-me para o seu colo, mas eu me livrei de suas mãos suadas e frenéticas.
— Você não fez nada! — acusei, e as lágrimas que tanto suprimia, finalmente abriram as comportas, rolando livremente por meu rosto.
— Mas, querida... — ela começou a choramingar.
— Não, pare! — Afastei-me dela. — Apenas pare com isso! Não me diga que as coisas ficarão bem amanhã, que ele só bebeu um pouco mais do que devia. Não fale que ele é melhor do que o papai porque decidiu cuidar de você, e meu pai não. Chega de ilusões e mentiras, Madeleine! Ele não vai melhorar. Nunca. Você me ouviu? Nunca! — Sequei as lágrimas com a ponta de meu suéter num gesto cheio de raiva, e rumei para o meu guarda-roupa. — Não suportarei nem mais um minuto nessa casa, não enquanto ele estiver aqui. Vou me mandar para Blaine. Vou morar com a sra. Fernandez. — A sra. Fernandez era uma amiga de Madeleine, que sempre cuidou de mim, desde que eu nasci. Era como uma tia ou algo assim.
— Espere, você não pode, você não... — Madeleine começou a protestar, mas sua voz foi perdendo as forças.
Já estava lançando minhas coisas dentro das malas e mochilas que estavam empilhadas embaixo da minha cama.
Madeleine assistiu tudo em silêncio. Como sempre.
Assim que terminei, sai desajeitadamente, equilibrando a bagagem. Lancei tudo no porta-malas do meu carro — que havia acabado de comprar com muito esforço — e tomei o lugar do motorista. Madeleine segurou meu braço antes que eu fechasse a porta. Ela disse:
— Passe algum tempo lá, talvez umas semanas, ou até que o período de férias termine. Quando as coisas se acalmarem, você poderá voltar. O que acha, querida? — Sorriu para mim, como se aquela fosse a melhor proposta do mundo, seus olhos brilhando com aquela perspectiva que parecia oferecer coisas maravilhosas.
— Não era eu que deveria estar saindo — não a olhava; fitava cegamente à frente. — E não voltarei para cá.
Dito isso, dei a partida, queimando pneu. A forma de Madeleine, minha mãe, foi desaparecendo de meus retrovisores. Agora poderia chorar, teria tempo para isso durante a viagem.
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[DEGUSTAÇÃO APENAS] Do Éden à Luxúria - Trilogia O Círculo dos Imortais Vol.I
Mistero / ThrillerAPENAS PARA DEGUSTAÇÃO. DEZ CAPÍTULOS, APENAS. CASO QUEIRA CONCLUIR A LEITURA, NOS CHAME NO INBOX! <3 "O Círculo dos Imortais" trata-se de uma trilogia que tem Melissa Saccer como protagonista. Narrado em primeira pessoa - por vezes, em tercei...