Eu beberiquei um gole do meu café enquanto olhava para o último exemplar do jornal da cidade que eu tinha decidido guardar. Era a última edição que eu recebi antes de me mudar de Viveiro, que eu mantinha na minha mesa-de-cabeceira.
As reportagens que antes se referiam a mim como a Incendiária e me pintavam como alguém para se temer e manter distância, mas ao mesmo tempo acompanhar como um daqueles casos romantizados que viram séries de televisão, agora tinham um novo apelido de tabloide para Valéria Corrêa: a Injustiçada.
Eu não estou brincando.
Pelo menos agora os jornalistas de Viveiro podiam descansar sabendo que, ao menos uma vez, eles estavam certos.
Mas não por muito tempo, no que dependesse de mim.
Eu encostei a borda da caneca nos lábios enquanto admirava a primeira página do jornaleco. Na chamada da notícia, as fotos de Carlos Henrique Leal e Stela Marchesini dividiam um layout de quatro cores. Eles usaram as fotos da escola em vez de tiradas por paparazzi, como fizeram comigo.
A cortesia da decência mínima não me tinha sido estendida. Não pude deixar lembrar horrivelmente da época que eu não podia atirar um graveto para o meu cachorro no quintal, sem que tivesse que terminar o dia com meu pai me escoltando para dentro de casa por conta da falta de noção dos jornalistas.
Vai ver eles só estavam com medo de chegar perto o bastante de Carlinhos e Stela. Afinal, eles eram realmente perigosos, porque (diferente do meu caso) contra eles havia provas, não apenas especulações.
Eles pareciam bem inocentes naquelas fotos. Estudantes comum, jovens adolescentes do interior que não tinham uma preocupação no mundo. Eu tentei não ressentir o modo como eu sempre era fotografada com os cabelos ou mãos no rosto, como se eu tivesse algo muito sombrio a esconder.
Babacas, eu pensei enquanto controlava o ímpeto de desenhar chifres e bigodes nos rostos de Carlos e Stella.
Eu deixei o jornal de lado, dessa vez me segurando para não desenhar um alvo nos rostos dos meus, bem, alvos. Em vez disso, me levantei da cama e abri a gaveta onde eu guardava minha roupa de baixo, o único esconderijo efetivamente seguro naquela casa. Eu era vigiada constantemente. Uma vez, peguei meu pai e minha nova madrasta conversando sobre a possibilidade de que eu começasse a fazer terapia, talvez até iniciar um tratamento com medicamentos.
Eu sei que eles me ouviram espirrar por trás da porta. Talvez estivessem preocupados que eu fosse procurar esse tipo de medicação pelos meus próprios meios, e Deus sabe que em uma cidade como Vitória eu encontraria.
Encarando a gaveta, estendi a mão e peguei um envelope pardo e gordo, sentindo sua textura áspera na minha palma. Fora o monitoramento incessante de David Velten para com a Gangue, já que ninguém desconfiaria dele e era mais seguro que ele fosse o responsável por coletar informações, os documentos dentro do envelope consistiam na parte mais difícil e demorada do meu plano de ação.
Eu dei um sorriso melancólico para o barbante enrolado em um círculo de plástico, tentando negar a mim mesma que eu estava com medo do que viria a seguir.
— Não são nem dez da manhã e você está sorrindo. — a voz de Lucas invadiu o meu quarto, e eu praticamente pulei no meu próprio eixo.
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Das Cinzas Às Cinzas
Teen FictionDepois do escândalo que revelou o verdadeiro responsável pelo incêndio na Fundação Haroldo Santini, Valéria estava finalmente livre para viver a sua vida como bem entendesse. O plano inicial era voltar para Vitória, a cidade que lhe dera abrigo quan...