Eu acordei imersa em uma escuridão tão profunda que pensei que não faria diferença abrir os olhos ou não.
Com um clique no botão lateral do meu celular, a tela se iluminou e me mostrou que meus pesadelos continuavam pontualmente me acordando às três da manhã, como se o meu inconsciente tivesse um relógio próprio, um despertador. Meu lado racional me certificou de que era apenas uma coincidência aleatória, mas meu lado supersticioso falava mais alto enquanto, também pontualmente, uma lembrança vívida se esgueirava na minha mente assim que os meus olhos se abriam, me acordando de último pesadelo com um reflexo inexistente de luz.
Na minha memória, Dolores e eu estávamos no meu quarto antigo, no sobrado em que vivi em Viveiro. Nos aprontávamos, e estávamos honrando a nossa tendência a nos divertirmos mais entre nós duas, experimentando vestidos e penteados, no que na festa em si. Eu estava depositando uma fina camada de batom vermelho sobre os lábios, enquanto Dolores pintava os cílios com máscara e tirava sarro da minha cara dizendo que eu estava parecendo a mãe dela. Na lembrança, eu me viro e lanço a ela um olhar cheio de escárnio pelo espelho que dividíamos enquanto nos arrumávamos, dizendo que se ela quisesse me ofender, teria de dizer que eu estava parecendo a minha mãe.
Lores até tentaria me convencer de que era horrível falar assim da minha própria mãe na época, e me lançaria um olhar de reprovação, mas eventualmente ela tinha desistido de reparar, ainda que apenas do meu lado, a minha relação fracassada com minha progenitora.
O rosto inocente de Nicholas, emoldurado por seus até então longos cachos perfeitos, espiava pela porta de vidro que dava para a minha varanda. Suas invasões eram tão costumeiras àquele ponto, que eu me assustei foi com o grito abafado e envergonhado de Dolores, ainda que nós duas estivéssemos totalmente vestidas. Ele disse que eu estava bem bonita de batom e eu senti meu rosto corar, tanto na lembrança quanto naquele momento, no meu quarto escuro, segundos antes de Dolores bater com a porta na cara dele, reprimindo-o por invadir o espaço sagrado de duas garotas se arrumando.
A lembrança do quanto eu desejava que ele ficasse, e que eu nunca tivesse uma porta na varanda para ser fechada, ou qualquer outra coisa nos separando, era sufocada pela imagem ainda mais recente em meus pensamentos do caixão sendo lacrado ao fim das solenidades em sua honra, seus pais e irmãos carregando-o até o túmulo, tornando definitiva a realidade de que várias camadas de terra e concreto me separavam de Nicholas Jordan para sempre.
Exceto pelas minhas memórias, eu nunca mais veria o seu rosto. À exceção das lembranças que ora não pareciam ser o bastante para silenciar a minha própria voz dentro da minha cabeça, para que eu pudesse ouvir a voz dele.
Nenhum pesadelo se comparava ao horror daquela realidade.
Eu bufei deitada de costas sobre a cama desconfortável, nova em folha, que ainda não havia sido usada o suficiente para se parecer com uma cama. Os lençóis, também novos, pareciam estranhamos na minha pele e eu me sentia como se estivesse acampando, ou viajando. Definitivamente, não me sentia em casa.
A campanha de todos à minha volta para que eu mudasse de vida, em todos os aspectos, havia levado o melhor de mim. Eu havia concordado com todos os argumentos exaustivos de que ficar em Viveiro não seria bom para mim. Tinha aceitado me mudar para Vitória, o que por algum tempo me deu algo com o que me preocupar – meu pai precisava de toda ajuda que pudesse reunir com sua coleção de carrinhos miniatura, já que estava vindo comigo.
Eu já tinha desistido de pedir às pessoas que me deixassem em paz e, em um acordo mudo, todos faziam o que podiam para me dar espaço.
Meu pai e sua atual namorada (e minha ex-advogada) Dra. Mônica, eram os mais radicais no quesito deixar-o-passado-no-passado. Fora os dois, meu convívio social não era lá muito intenso, contando apenas com aparições honrosas de meu irmão de consideração, Zaca, e meu... namorado? Lucas Avelar? Eu ainda tinha dificuldades com a palavra.
Não tinha exatamente tido tempo para definir o que eu e Lucas éramos, de tão afundados em luto e trauma que nós dois estávamos. Parecia errado me referir a ele como apenas um amigo. Era mais fácil para as pessoas entenderem o rótulo "namorado", então, era o que estávamos usando.
Debaixo da nuvem que me cegava de meus próprios pensamentos, eu sabia que o que eu sentia por Lucas ainda estava lá. Imaculado. Inalterado. Eu só gostaria de ter tido a chance de escolhermos dar nome ao que temos em outro momento.
Olhei mais uma vez para o relógio. Levei menos tempo que o normal para me recuperar das memórias intrusas dessa vez, e me virei no travesseiro para tentar voltar a dormir. Não que eu precisasse. Eu não estava frequentando a escola, e meu pai ainda estava pisando em ovos comigo, com medo de desencadear algum ataque de raiva – coisa que tinha se tornado bem comum depois do que aconteceu na Mansão Leal no último ano. Arthur não fazia questão de me acordar cedo para nada, já que eu não tinha a obrigação com o colégio, o que eu agradecia profundamente. Meu sono era melhor de manhã, por alguma razão.
A questão é que nem Lucas, nem eu, tivemos a oportunidade de terminar o ano escolar. Não havia a remota chance de que ele voltasse para uma educação militar depois de tudo que vivemos. Lucas estava tão traumatizado com as nossas vivências quanto eu, e até o seu insensível pai, Edson Avelar, concordava que o tipo de pressão que a Marinha Mercante colocava nos alunos não era nem de longe o melhor para Lucas no primeiro momento.
E eu simplesmente não tinha estrutura mental e emocional para atravessar os portões do Colégio Leonardo da Vinci mais uma vez. Em especial, agora que Zaca não estava mais lá.
Além do mais, eu tinha outros planos para os próximos meses. Planos que não incluíam a conclusão do Ensino Médio.
Uma onda de excitação me tomou por completo com esse pensamento. Finalmente me convencendo de que eu não conseguiria voltar a dormir, eu peguei o celular de novo nas mãos. Abri minha caixa de e-mails, que tinha apenas uma notificação de correspondência que chegou à meia-noite. Todas as mensagens dele chegavam naquele horário, pontualmente.
O nome de David Velten brilhava na tela, e no campo destinado ao assunto, eu lia as palavras que esperei tanto tempo para ler.
Encontrei o último.
Eu fechei os olhos e sorri, aliviada e eletrizada. Agora eu sabia que não poderia voltar a dormir. Pulei da cama e abri o computador, onde eu guardava todo o material que David e eu tínhamos coletado nos últimos três meses, sabendo que teríamos de fazer justiça com nossas próprias mãos se quiséssemos que A Gangue realmente pagasse pelo que fez.
Com Karina Velten. Com Nicholas Jordan.
Comigo.
✖✖✖
sejam bem-vindos ao fim.
com amor, B
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Das Cinzas Às Cinzas
Teen FictionDepois do escândalo que revelou o verdadeiro responsável pelo incêndio na Fundação Haroldo Santini, Valéria estava finalmente livre para viver a sua vida como bem entendesse. O plano inicial era voltar para Vitória, a cidade que lhe dera abrigo quan...