prólogo

28 9 68
                                    

Os cabelos brancos da velha Ava se destacavam em meio à escuridão daquela noite

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.


Os cabelos brancos da velha Ava se destacavam em meio à escuridão daquela noite. Do outro lado da fogueira acesa entre eles, estava sentada sua neta favorita, Úrsula, para quem contava suas melhores histórias em segredo, aquelas que sua família prometeu não passar adiante.

Era uma noite escura, de um céu sem estrelas e a lua quase não podia ser vista por entre as nuvens, e a família Kam havia se reunido para comemorar o décimo aniversário se sua filha mais nova, aquela que o destino prometera ser a responsável pela salvação de seu sangue. Em meio a tantos filhos homens, ela era a única após nove tentativas, aquela que poderia continuar com a linhagem de seus parentescos.

Úrsula tinha longos cabelos pretos e olhos tão escuros quanto àquela noite, seus lábios eram finos e eram ladeados por um par delicado de covinhas. Quando ela sorria, seus olhos se fechavam em uma meia-lua, algo que nenhum de seus nove irmãos mais velhos tinha.

— As coisas eram melhores antes — a velha Ava começou — Quando eu e vosso avô nos conhecemos, as noites tinham mais estrelas e as crianças dormiam antes do sexto assobio. Eu sinto falta de como tudo acontecia no passado, a maneira com que falávamos, agíamos e pensávamos... eu sinto mais falta ainda de quando nós tínhamos liberdade para falar do que quiséssemos — ela lançou um olhar fuzilante para o filho, Aegor, aquele que havia lhe proibido de contar sobre a histórias das terras distantes para seus netos.

Úrsula era a única privilegiada a ouvir tais contos, por causa de seu dom natural de guardar segredos de outras pessoas, diferente de seus irmãos, que só sabiam como causar tumulto e não ficavam de boca fechada sobre absolutamente nada.

— O que há além das montanhas, vovó? — Miguel, o mais velho dentre todos os dez filhos de Aegor e Tânia, perguntou, mordiscando um grande e suculento pedaço da coxa do frango especial que sua familia criava e havia assado para aquela ocasião.

Aegor fez uma careta para a mãe, numa espécie de ameaça para que a mesma não sucumbisse à curiosidade dos novos membros da família Kam.

— Não há nada de especial por lá — a velha deu de ombros, com uma expressão carregada de tristeza em seu rosto — Mas não aconselharia nenhum de vocês para ir até lá.

Úrsula comprimiu os lábios, segurando o desejo de poder sorrir naquele instante. Ela sabia o que o mundo guardava por detrás das gigantescas montanhas de Tarion, onde só se via o mais profundo cinza e nada além disso, um lugar onde as nuvens se uniam e formavam uma cortina espessa do mais puro branco.

Haviam coisas naquelas terras que nem mesmo a avó de Úrsula tinha conhecimento, coisas que fariam qualquer homem e mulher estremecerem apenas ao imaginar suas formas.

— O que gostaria de ganhar em seu décimo oitavo ciclo, querida? — Tânia perguntou à filha, contornando aquele assunto desagradável e evitando que seu marido destruísse aquela pequena reunião familiar por conta de seu ódio contra o passado.

Úrsula sorriu, mostrando suas graciosas covinhas para todos que ali se encontravam naquele momento tão especial. Ela gostaria de pedir muitas coisas, mas sabia que havia um limite do que ela poderia pedir, principalmente quando se tinha nove irmãos em uma mesma casa.

— Um cavalo — ela respondeu, sem pressa alguma — De pelo branco como a neve que avisto no horizonte todas as manhãs, para que eu possa cavalgar ao nascer do sol.

Tânia assentiu. Ao décimo ciclo, todos os Tarionianos poderiam escolher o melhor presente de suas vidas, aquele que só iriam receber quando alcançassem o décimo oitavo ciclo.

Mesmo que sua família fosse muito maior do que as outras de sua aldeia, Aegor e Tânia fariam o que fosse necessário para conseguir agradar a cada um de seus filhos.

Miguel era o primeiro filho, o que mais se parecia com Úrsula fisicamente, e aquele com quem a garota mantinha um maior afeto, ela estaria onde quer que ele estivesse, como um carrapato agarrado à carne de uma vaca. Sandro era o segundo, aquele que tinha maior conhecimento e havia prestado mais atenção às aulas que tivera na pequena escola local, diferente do terceiro mais velho, Otto, que acreditava que tudo se resolvia com lutas e discussões agressivas, o típico brutamontes.

Na linhagem do meio haviam os quatro jovens mais belos da aldeia — segundo as opiniões femininas locais —, César — que tinha cabelos loiros como os de seu falecido avô paterno e exalava rebeldia —, Crys — que tinha cabelos mais escuros, e adorava escalar as mais altas árvores —, Tomás — que tinha paixão por cada bela moça que conhecia, independente de suas origens e, por causa disso, sempre era vítima dos irmãos mais velhos de algumas casas —, e por último, Leandro, aquele que acompanhava Otto por todos os lados e sempre saía em desvantagem, chegando em casa com altos ferimentos por causa das brigas em que se metia.

E haviam os três mais novos, Átila, que planejava se mudar para terras distantes quando atingisse seu décimo oitavo ciclo, Ulisses, aquele que tinha um coração tão doce quanto o de um animal indefeso, e a audaciosa Úrsula, que sempre escapava de casa para aprontar contra as garotas de sua idade. Enquanto as jovens de sua idade estavam sendo educadas para serem ótimas donas de casa no futuro, aquela menina queria ser como seu irmão mais velho, e assim como ele, tornar-se uma guerreira invencível.

Porém ela sequer sabia que até mesmo os guerreiros invencíveis tinham data de validade.

Na manhã seguinte ao seu aniversário, sua família se encontrava estranhamente quieta, e sem entender muito bem o que estava acontecendo, Úrsula viu alguns de seus vizinhos chegarem em sua casa, com expressões carregadas demais para estarem ali apenas por uma visita.

— Mamãe, o que está havendo? Por que todos estão aqui? — ela quis saber, mas os olhos de sua mãe estavam marejados demais e sua voz estava embargada, de forma que não poderia responder à filha naquele momento.

Ulisses segurou na mão de sua pequena irmã e a conduziu para fora da pequena residência dos Kam. Seus olhos verdes cintilavam com a luz do sol, era uma das coisas que o faziam parecer mais doce do que já era.

— Miguel foi para as estrelas — o garotinho disse, assim que os dois se sentaram aos pés da grande macieira que ficava nos fundos do casebre — Somos apenas nove agora.

Úrsula não poderia chorar mesmo se quisesse, em situações como aquela, seu choque era maior do que qualquer uma de suas emoções, de forma que seu corpo levava tempo para reagir da maneira correta.

— Um dia nós estaremos lá também — o pequeno Ulisses comentou, tão sábio quanto seu irmão Sandro — Mas por ora, teremos que seguir as ordens de nosso segundo irmão.

Sandro se tornaria o filho responsável pela criação dos outros oito mais novos, agora que o verdadeiro mais velho havia partido para um lugar que nenhum deles conhecia.

Miguel havia contraído uma doença misteriosa, fazia dias que ele estava em más condições e nem por isso se distanciara de sua irmã mais nova, chegando ao ponto de carregá-la em suas costas pelas ruas da aldeia do Mar.

Na noite daquele dia, foi que Úrsula chorou. Quando todos estavam dormindo e ninguém poderia ver sua fraqueza.

 Quando todos estavam dormindo e ninguém poderia ver sua fraqueza

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.
O Que Há Além das MontanhasOnde histórias criam vida. Descubra agora