Ato de fuga: Cena I

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Cidade central de Vonpiela. Mês das flores, 32º ano de paz.

Se eu fosse parar para notar, algumas coisas sempre pareceram mais simples de tomar nota do que outras, como a forma que o céu emitia aquela luz leve e calma (cenário típico de finais de tarde em histórias de ninar que a ama conta para crianças bem comportadas daquelas casas grandes) ou o modo que o vento dançava cálido, envolvendo todas as flores e espalhando o sabor da primavera para o rosto sorridente de cada uma daquelas pessoas tão coloridas. Outras coisas eram notadas apenas por aqueles que tinham olhos atentos, como a forma que a terra parecia tremer em ansiedade e antecipação para o desenrolar daquela trama bardica.

Meu sorriso se desfez quando vi algumas jovens damas apareceram correndo, carregando seus vestidos chamativos acima de seus joelhos e conversando sem prestar atenção a nenhuma daquelas coisas ao seu redor. Desviei o rosto respeitosamente e suspirei resignado, enfiando meus pés ainda mais fundo na terra batida do quintal de minha mãe e apenas observando o modo como a vermelhidão da terra combinava com o marrom escuro de minha pele. Demorou longos minutos para que eu levantasse novamente meus olhos para observar as pessoas passarem.

A inebriante cidade das flores parecia correr de um lado a outro, arrumando suas roupas amarrotadas e pendurando suas faixas coloridas em frente as suas casas que cheiravam a jasmim e bolo de leite. Balancei meu corpo de um lado a outro enquanto ouvia os músicos contratados pela capital começarem a tocar animados na praça central, onde (tenho certeza) as crianças se reuniam fugitivamente para danças com seus calções brancos e azuis, ansiosas demais para festejar que não poderiam esperar suas mães vesti-las adequadamente.

Um sorriso deixou meus lábios quando lembrei da animação de minha irmã mais nova durante o café da manhã deste mesmo dia. Ouvi-la contar sobre as carruagens, os nobres e os vestidos luminosos (pelo menos eles eram luminosos de acordo com a menininha da casa Olean que ficava ouvindo escondida a conversa da mãe com as outras senhoras) que ficariam, com toooda certeza encantados sobre a forma como as flores dela cheiravam tão bem e música de seu violino era tão suave como o som das cachoeiras que "cantava" romanticamente ao fundo... era como ver aquela jovem de quatorze anos voltar a ter novamente seis.

Um soar de sapatos me retira de meu devaneio e observo duas jovens senhoras passarem com os arrealados para minhas roupas sujas na rua de trás de minha casa. Percebo, irritado, que as duas movimentam as mãos uma sobre a outra, num antigo ritual para afastar o mal... para me afastar. Um pouco mais atrás uma senhora idosa agarra o braço da neta e a empurra para que ela pudesse andar mais rápido e se afastar de minha presença. Um tremor de raiva passou por meu rosto... pensei que a ideia de que minha presença fosse impura já tivesse sido deixada de lado.

Com uma força desnecessária eu retiro meus pés da terra vermelha e calço meus gastos sapatos de trabalho e, antes que me arrependa da decisão, aperto o manto escorro sobre meus ombros e rumo em direção as grandes estufas de meu pai. Nem mesmo uma visita real poderia me retirar do posto de aberração atraente demais para tirar os olhos... patéticos.

Enquanto pego o caminho mais longo e solitário por dentro da floresta úmida, seguro a trança roxa que minha irmã fez em meus cabelos e a estico até meus braços estarem abertos. Elas fizeram tranças longas demais em mim dessa vez, mas nem adiantaria reclamar... Kaluna gosta das tranças nesse tamanho. Assim que a trilha termina eu posso ouvir o barulho mais forte das cachoeiras e o cheiro forte das doces flores de Demin. Com o humor mais leve eu saltito o caminho de pedra em cima da água e ele me segura para que não caia, como se fossemos velhos conhecidos que ansiaram um pelo outro durante toda uma vida.

O mundo pareceu mais bonito assim que entrei na estufa principal e retirai a capa, estendendo-a sobre uma mesa linda, para pear as luvas roxas que eram a marca de minha família. Retirei os colares, brincos e pulseiras de ouro rosa e sorri ao observar o contraste que esses adereços faziam contra minha pele negra. Logo a estufa toda era preenchida por minha voz.

Melifa e a jornada do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora