Dia 4

16 3 6
                                    

Hoje fui ao mercado comprar algumas coisas que faltavam aqui em casa, mais especificamente alimentos e produtos de limpeza. É impressionante - mais que isso, inacreditável - circular pelo bairro e não avistar ninguém mais. As ruas da cidade encontram-se totalmente vazias, como uma cidade fantasma. ''''''''''''' (Desculpem-me por estes caracteres invasivos, mas eles foram digitados pelo manhoso Zimba - que é muito apegado em mim e adora subir no meu colo o tempo todo - e resolvi deixá-los como prova de sua fiel companhia). Enfim, sempre vi aquelas cenas de filmes distópicos de fim de mundo ou de ataques de zumbi com cidades desoladas e me parecia uma realidade bem distante. Agora, tudo passou a ser verossímil, passível de acontecer. Isso me causou uma certa estranheza, como se o mundo estivesse entrando em uma nova era apocalíptica. Agora, porém, já estou em casa, sentado no sofá com meus amiguinhos de quatro patas, pronto para dar continuidade ao meu relato...

Não foi difícil encontrar a casa, pois Evandro havia me passado seu endereço e eu havia o inserido no Google Maps. Acho até que aquele velho ditado popular já não faz mais sentido hoje em dia, e eu o substituiria por "Quem tem GPS vai a Roma" (embora digam que o sentido original da frase seja outro, popularmente o usamos assim).

A residência ficava localizada em um bairro afastado do centro da cidade, mas mesmo assim próximo do mar. Comecei a ficar mais entusiasmado ainda quando percebi que o GPS estava me levando cada vez mais perto da praia. Assim que a voz feminina do GPS disse "Você chegou no seu destino", percebi que meu possível trabalho ficaria a apenas uma quadra do Oceano Atlântico Sul.

Como se a localidade não fosse atraente o bastante, a residência o era ainda mais: tratava-se de uma construção antiga, muito parecida com uma igreja de arquitetura barroca, com contrastes de tons claros e escuros e formas sinuosas; além disso, era cercada por árvores de grande porte (angico-branco, amendoeira-da-praia), cujos galhos chegavam até o topo da residência.

Estacionei o carro na frente do portão e mandei mensagem no Whatsapp, avisando-o que havia chegado. Poucos momentos depois, um homem surgiu pela lateral da casa, vestindo botinas pretas de borracha, bermuda de camurça marrom, chapéu de palha e segurando nas mãos uma tesoura grande de jardinagem. Estava sem camisa - era dezembro e fazia um calor insuportável. De sua testa, gotas de suor pingavam sem parar. Não era do tipo atlético, mas não estava "fora de forma".

Ele aproximou-se do portão, abriu-o e pediu para que eu entrasse, dizendo logo em seguida:

- Vou pedir pra você me aguardar um momento. Só preciso tomar um banho rápido. Murilo, certo? - enquanto falava, guiava-me pelo interior da casa.

O primeiro cômodo era uma sala de estar, com vários móveis de madeira, tão antigos como a estrutura da casa. Apesar disso, tudo estava bem conservado. Subimos um primeiro lance de escadas, que nos levou para o primeiro andar. No sofá da sala, havia uma senhora de idade avançada sentada. Assim que entramos no cômodo, Evandro dirigiu-se à mulher e disse:

- Mãezinha, temos um novo candidato à segurança da Mansão Silveira! A senhora conversa um pouquinho com ele pra ver se ele merece ficar, pode ser? - deu uma piscadela para mim enquanto falava. - Enquanto isso, vou tomar um banho, ok?

- Xá comigo - respondeu ela, com o rosto sério. - Senta menino - ela me pediu. Ela tinha uma expressão séria e rígida, sobrancelhas arqueadas e marcantes. Não era um rosto simpático. Fiquei me questionando se eu teria muitas dificuldades ou não. Por fim, sentei no sofá também, no assento próximo ao dela.

- Tá quente hoje, né? - falei sem jeito.

- É - ela respondeu e ficou calada, olhando para a televisão, cujo canal mostrava um filme de animação.

Conversamos pouco, sobre coisas triviais. Após alguns minutos, a voz grave de Evandro ressou pelo corredor:

- Murilooo! Faz favor!

A princípio fiquei sem reação, mas depois me levantei e segui a voz, até chegar no banheiro. A porta estava aberta. Evandro estava tomando banho atrás do box e pediu para que eu buscasse a toalha que havia esquecido em cima da cama. A casa possuía três andares, mas os cômodos não eram suntuosos, então não foi difícil me localizar. Voltei para a porta do banheiro e ele já estava fora do box esperando. Fiquei sem jeito e, encarando-o nos olhos, entreguei a toalha. Geralmente, quando estou embaraçado, costumo olhar para baixo. Mas eu não podia fazer isso, precisava agir com o profissionalismo que a situação exigia. A entrevista mal começara e eu já sentia que estava sendo testado de alguma forma. Rapidamente, ele enrolou-se na toalha, aproximou-se de mim e sussurrou no meu ouvido esquerdo:

- Ela não gosta de assumir que precisa de ajuda, entende? Por isso falei que você iria trabalhar na segurança da casa.

Meu coração já estava quase saindo da boca naquele momento. Não dava para negar que ele era um homem muito atraente e de presença: media por volta de 1,80m, era forte e sua expressão facial transmitia virilidade, principalmente por meio das sobrancelhas arqueadas. Aquela situação inusitada causou borboletas no meu estômago. Parecendo hipnotizado, apenas respondi que havia entendido e voltei para a sala.

Quando ele chegou na sala, começou a fazer perguntas sobre minha vida. Não fez muitas perguntas a respeito de minha vida profissional. Parecia mais interessado na minha vida pessoal e familiar. Ele era muito simpático e até mesmo espirituoso. Sua mãe - Dona Francisca - continuava quieta, respondendo apenas quando Evandro interagia com ela.

Após alguns minutos, ele agradeceu minha visita e pediu para que eu aguardasse um retorno. Ele me acompanhou até a porta e, antes de eu sair, disse:

- Nós queremos viver algo diferente aqui nessa cidade. Eu quero viver algo diferente.

Embarquei no carro e, enquanto voltava para casa, fiquei rememorando todas as cenas e cheguei à conclusão de que a entrevista não poderia ter sido mais enigmática...

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: May 31, 2020 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

O CuidadorOnde histórias criam vida. Descubra agora