Kira nunca gostou de tempestades. Desde pequena, os trovões a causavam calafrios, e a excessiva luminosidade dos raios que entra por sua janela provoca as mais apavorantes sombras em cada canto.
Mesmo agora, com seus catorze anos nas costas, precisa colocar uma música relaxante no fone de ouvido para dormir, esperando que o sono a leve.
Naquela noite em particular, as sombras das árvores em seu quarto e os galhos batendo no vidro da janela deixam tudo ainda mais aterrorizante. Não importa o volume em que coloca a música, a tempestade se sobressai. Ela nunca entendeu o medo.
Ela olha no relógio no criado-mudo ao lado da cama. 00:07. A noite ainda se estenderia.
Kira se levanta, enrolando o cobertor azul anil em volta de si como se ele a protegesse de toda a escuridão. Com os pés descalços no chão gelado, Kira se dirige até o quarto da mãe, sentindo-se uma criança.
Espera encontrá-la dormindo a uma hora dessas, mas Marta está bem acordada. Kira a observa andar de um lado para o outro no quarto pela fresta entreaberta da porta. Com uma mão no peito e uma camisola de seda salmão, a mãe escuta com um semblante aflito à outra voz no telefone. Kira pega apenas partes da conversa.
- "Ai, meu Deus."
- "Sim, tudo bem, eu aviso."
- "Por favor, liguem a hora que for necessário."
Marta desliga e se senta na cama. Parece à beira das lágrimas. Não está triste, está preocupada.
- Entre, Kira, sei que está aí.
Kira é pega de surpresa. A garota se sente uma criança, pega fazendo algo errado.
- O que aconteceu, mãe?
Mãe e filha se sentam lado a lado na cama. Kira se encolhe no cobertor para ouvir as palavras da mãe. Quem teria ligado tão tarde com notícias que a deixaram tão preocupada?
- Era da clínica. Sua tia Alice fugiu.
Kira sente um frio na barriga indecifrável.
- Como assim fugiu?
- É, foi agora há pouco. Feriu um dos enfermeiros com uma faca roubada do refeitório e usou o crachá dele para sair.
Marta parece visivelmente preocupada, o que também deixa Kira. Ela não lembra da tia, mas lembra-se das histórias eufêmicas contadas durante os anos. Alice e Marta são gêmeas, nascidas da mesma placenta, idênticas na aparência, mas não na personalidade.
Desde pequena, Alice demonstrava distúrbios de personalidade. Constantemente, achava ser Marta. Nunca fora necessário uma preocupação extra, tirando o dia em que Marta deixou a pequena Kira dormindo no berço, com seus dois anos, e foi ao banheiro. Para seu desespero, a garota não estava mais lá quando voltou.
Era uma noite de tempestade como aquela.
Marta chamou a polícia, e para sua surpresa, Alice fora encontrada com a pequena Kira no banco de trás, tentando fugir do país. Alegava com toda a convicção que a filha era sua.
Desde aquele dia, doze anos atrás, as irmãs não têm mais contato. Alice vivia em um hospital psiquiátrico desde então, até aquela noite.
- Não tem que se preocupar com ela, mãe.
Marta esfrega os olhos, visivelmente cansada e estressada. A camisola larga deixa seu ombro à mostra, com o desenho de uma tatuagem de estrela mal esboçada.
- Só não gosto de me lembrar dela, querida.
Kira sabe o quanto aquela época fora frustrante e desesperadora.
- Posso dormir com você?
Marta concorda. Sabe que a filha não gosta de dias tempestuosos e, para ser sincera, não quer dormir sozinha com os próprios pensamentos.
As duas adormecem lado a lado, a grande cama as acomodando perfeitamente.
A noite não parece mais assustadora quando estão lado a lado.x
Kira acorda sozinha na cama, sentindo o delicioso cheiro de café entrar pelas frestas da porta.
Não há vestígios da tempestade da noite passada - a luminosidade do sol que entra pela janela seguida por cantos de pássaros cria um cenário que parece ter saído de um filme de princesas.
Kira se levanta e vai direto para o andar de baixo.
- Bom dia! - Ela diz, contente. Sempre fora uma pessoa matinal.
- Bom dia, querida. - A mãe está com a mesma camisola salmão da noite passada. De costas para a filha, prepara um prato de torrada com ovos.
Kira devora um pão com manteiga, satisfazendo o estômago em jejum.
A mãe se senta com ela a mesa, na extremidade oposta.
- Alguma notícia da tia Alice?
- Ainda não.
Kira a estuda. A mãe parece não ter dormido nada. Está com as olheiras carregadas, e parece ainda mais magra do que recentemente.
- Dormiu bem? - A garota pergunta, já presumindo a resposta.
- Melhor que nunca, querida.
Kira sorri, mesmo sabendo que é mentira.
Por baixo da mesa, sente uma brisa gelada assolar seus tornozelos. Ela olha em volta, e seu coração dispara. A porta dos fundos está com uma fresta aberta, e pegadas enlameadas levam diretamente para o andar de cima.
Ela percebe que a mãe ainda não viu o mesmo que ela.
- Mãe… - Pede, calmamente. - Chame a polícia.
Marta não responde. Parece ainda mais paralisada que ela.
Kira não sabe o que fazer, mas está com uma faca de cortar pão em mãos. Sabe que o mais sensato seria deixar a casa, mas sua curiosidade é mais forte. Ela escuta o som de gotas pingando no andar de cima, como se o chuveiro tivesse acabado de ser desligado.
Kira sobe as escadas como uma flecha, a tempo de ver a água que escorre pela porta do banheiro do corredor.
Ela congela. A água está vermelha.
Movida por uma coragem que não sabe se tem, Kira caminha pé ante pé até a porta.
Está destrancada.
Ela abre devagar. O vapor quente e embaçado sai por ela.
Kira treme ao andar sobre a água vermelha aos seus pés. Ela escorre da banheira, percebe. As cortinas do box estão fechadas.
Ela não sabe o que esperar quando as abre.
Tudo, menos isso.
O corpo sem vida de uma mulher exatamente como sua mãe está a olhando com os olhos arregalados, a garganta cortada jorra o sangue que tinge a água.
Kira grita, levando as mãos à boca. Está prestes a chamar a mãe no andar de baixo e dizer que encontrou a tia Alice, mas percebe. No ombro direito do corpo, uma tatuagem de estrela desbotada se desenha.
Kira perde o chão.
Aquela era sua mãe.
Ela não sabe pelo que está mais apavorada. Por estar vendo a mãe morta no banheiro de casa, ou por finalmente entender quem está sentada na cadeira de sua cozinha.By: bzllan
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Contos de Terror - Coletânea
HorrorTrilhe no caminho mais obscuro de sua mente, absorva o mais sombrio que encontrar e transforme em palavras, faça quem ler cada palavra se perder na escuridão, apresente o mau da forma mais insana que conseguir. Isso é mais que um desafio ou um concu...