4ª Semana

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— Você tinha medo da sua mãe? Por isso não a confrontava?

— Não. Quer dizer, prefiro acreditar que não era medo. Ela chegou a me machucar fisicamente algumas vezes, mas meu receio maior era com a minha irmã.

— Considero plausível que tenha se sentido assim, principalmente pela forma como você descreve o comportamento dela. Acha que ela teria sido capaz de fazer algo com a sua irmã?

— É... não sei explicar. Após esse primeiro dia que tive que ficar no quarto, ficou difícil me controlar e não agir. Só que não consegui tirar da cabeça essa impressão ruim... de que ela faria algo terrível, caso eu confrontasse de vez as suas regras.

— Então esse primeiro conflito foi um divisor de águas? — América pergunta, ajeitando os óculos no nariz.

— Foi. Sem dúvida. E também foi quando comecei a pensar diferente.

— Diferente como?

— Como se minha vida fosse muito limitada — afirmo, pensando nas longas conversas com o Lucas e nas discussões intermináveis com minha mãe.

***

Incrível como coisas pequenas podem causar um impacto enorme em nossas vidas. Há poucas semanas, eu não tinha nem ideia de como algo simples, como conhecer uma pessoa, poderia mudar minha forma de ver o mundo. Conhecer o Lucas preencheu uma lacuna que eu nem sabia que existia dentro de mim. A vontade de conhecer o mundo e outras pessoas só aumentava à medida que nos víamos.

Durante o castigo, ele apareceu todos os dias na janela do meu quarto e ficamos um bom tempo conversando escondidos. Eu não sabia por que ele continuava voltando, já que minha vida era muito monótona. Geralmente, ele quem contava as novidades e eu ficava fascinada com suas histórias.

Como nosso diálogo era através de recados, ele me ensinou a escrever por meio de acrônimos e a diminuir o tamanho das palavras, para facilitar a conversa. Dizia que eu perdia muito tempo escrevendo, que precisava ser mais rápida. Todos aqueles símbolos e abreviações, que mais pareciam erros de português, eram, na verdade, uma forma diferente de ter um diálogo. Não era tão difícil assim de entender e de me adaptar.

Foi através de bilhetes que ele me contou que a escola era muito chata. Que ele era obrigado a fazer provas em todas as disciplinas e que em algumas não tirava notas boas. Quando isso acontecia, fazia de novo para recuperá-las. Disse que isso se chamava recuperação. Também me contou como era a praia. Que a água era bem gelada e correr na areia não era tão agradável assim. Grudava na pele, principalmente depois de ter saído do mar. Dei risada quando ele relatou como era um alívio tomar banho depois de entrar no mar e ter que limpar a sunga que ficava cheia de areia. Explicou que entrava areia no tecido e até nas nossas partes mais íntimas. Corei ao imaginá-lo tirando a sunga e limpando a areia do corpo. Fiquei mais vermelha ainda quando pensei nas partes do meu corpo em que eu encontraria grãos de areia após me sentar no chão da praia. Ele rachou de rir quando percebeu que eu estava envergonhada.

Aliás, me deixar envergonhada era o seu mais novo passatempo. Vivia me perguntando coisas sobre as quais eu não conversava com minha mãe. Não era por maldade, por curiosidade mesmo. E eu estava tão entretida e interessada nesse novo universo que nem me preocupava, afinal, queria saber mais sobre aquele garoto.

Às vezes, contava coisas da escola, sobre os amigos, os eventos. Descreveu como era a cidade: movimentada, cheia de carros, barulhenta. Bem diferente da calmaria à qual eu estava acostumada. Teve dia que até o ajudei a estudar. Percebi que estudávamos quase as mesmas matérias e outras eu aprendi antes dele.

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