— Deixe-me ver se entendi — ela interrompe meu monólogo, apoia os cotovelos nos joelhos e coloca as mãos no queixo. — Você morava com sua mãe e sua irmã mais nova, portadora de síndrome de Down. Sua mãe era muito rigorosa e vocês mal saíam de casa?
— Isso.
— Ela era obcecada por organização e controle?
— Exatamente — concordo, mordendo o lábio inferior.
— Certo... e esse menino que surgiu, você o viu outra vez?
— Ele é uma das minhas decepções.
— É a segunda vez que você fala sobre decepções.
Não foi uma pergunta.
— É. — Suspiro.
— Não consegue se desvincular delas?
— Consigo. Quer dizer, conseguia... não sei — respondo gaguejando.
— Conseguia? Aconteceu alguma coisa que as colocou em evidência?
— Sim.
— E o que foi isso? — insiste.
— Ele reapareceu.
— Quem reapareceu? O menino? — Ela muda a posição das pernas.
***
— Vêm da cegonha!
Cerrei os olhos e franzi o nariz ao sentir o incômodo no tímpano causado pelo grito da minha irmã.
— Não, Val, o que a dona Célia está querendo dizer é que precisa de um homem e uma mulher para ter um bebê.
— Não! O neném vem do céu! Mamãe disse pra Valéria. A cegonha traz o neném, deixa na porta de casa. Val chegou assim! Vivi também!
Emburrada, ela cruzou as mãos sobre o peito e estufou as bochechas. Essa era a imagem clássica da minha irmã quando estava irritada e não aceitava alguma coisa. Dessa vez, era "de onde vêm os bebês", assunto que dona Célia trouxe para a aula de hoje. Eu aprendi há muito tempo, mas Val viu uma cena de parto em um filme e estava insistindo nesse assunto há dias.
— Val, quando você era bebê, ficou na barriga da mamãe, não foi? — dona Célia começou com a voz baixa.
Ela assentiu, balançando a cabeça devagar.
— Então, você saiu de dentro da barriga da sua mãe, certo?
Minha irmã assentiu mais uma vez, deixando os braços caírem e torcendo o lábio para o lado, concentrada no que ouvia.
— E como você entrou lá?
— A Val não sabe — respondeu.
— O papai colocou você lá dentro. Ele dormiu na cama com sua mãe e você apareceu dentro da barriga dela — dona Célia resumiu, deixando de lado os detalhes.
Valéria arregalou os olhos e me olhou totalmente perplexa.
— A Vivi também?
— Eu também — concordei com um leve sorriso.
— A mamãe deixou o papai colocar o bebê lá dentro? — Ela olhava de mim para a dona Célia sem parar.
— Deixou...
— Não doeu?
— Doeu o quê? — Minha mãe apareceu no batente da porta da sala.
— Mamãe deixou o papai colocar a Val e a Vivi dentro da barriga dela. Valéria não veio da cegonha. — Ela movimentava a cabeça para os lados, enfatizando o que dissera.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Dilacerada
عاطفية*DEGUSTAÇÃO* Livro completo na Amazon. Vivian não leva uma vida fácil. Marcada por um passado turbulento, viveu metade dos seus 27 anos se reconstruindo e batalhando para se reerguer. Reservada e com poucos amigos, não confia em quase ninguém e acr...