2ª semana

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— Deixe-me ver se entendi — ela interrompe meu monólogo, apoia os cotovelos nos joelhos e coloca as mãos no queixo. — Você morava com sua mãe e sua irmã mais nova, portadora de síndrome de Down. Sua mãe era muito rigorosa e vocês mal saíam de casa?

— Isso.

— Ela era obcecada por organização e controle?

— Exatamente — concordo, mordendo o lábio inferior.

— Certo... e esse menino que surgiu, você o viu outra vez?

— Ele é uma das minhas decepções.

— É a segunda vez que você fala sobre decepções.

Não foi uma pergunta.

— É. — Suspiro.

— Não consegue se desvincular delas?

— Consigo. Quer dizer, conseguia... não sei — respondo gaguejando.

— Conseguia? Aconteceu alguma coisa que as colocou em evidência?

— Sim.

— E o que foi isso? — insiste.

— Ele reapareceu.

— Quem reapareceu? O menino? — Ela muda a posição das pernas.

***

— Vêm da cegonha!

Cerrei os olhos e franzi o nariz ao sentir o incômodo no tímpano causado pelo grito da minha irmã.

— Não, Val, o que a dona Célia está querendo dizer é que precisa de um homem e uma mulher para ter um bebê.

— Não! O neném vem do céu! Mamãe disse pra Valéria. A cegonha traz o neném, deixa na porta de casa. Val chegou assim! Vivi também!

Emburrada, ela cruzou as mãos sobre o peito e estufou as bochechas. Essa era a imagem clássica da minha irmã quando estava irritada e não aceitava alguma coisa. Dessa vez, era "de onde vêm os bebês", assunto que dona Célia trouxe para a aula de hoje. Eu aprendi há muito tempo, mas Val viu uma cena de parto em um filme e estava insistindo nesse assunto há dias.

— Val, quando você era bebê, ficou na barriga da mamãe, não foi? — dona Célia começou com a voz baixa.

Ela assentiu, balançando a cabeça devagar.

— Então, você saiu de dentro da barriga da sua mãe, certo?

Minha irmã assentiu mais uma vez, deixando os braços caírem e torcendo o lábio para o lado, concentrada no que ouvia.

— E como você entrou lá?

— A Val não sabe — respondeu.

— O papai colocou você lá dentro. Ele dormiu na cama com sua mãe e você apareceu dentro da barriga dela — dona Célia resumiu, deixando de lado os detalhes.

Valéria arregalou os olhos e me olhou totalmente perplexa.

— A Vivi também?

— Eu também — concordei com um leve sorriso.

— A mamãe deixou o papai colocar o bebê lá dentro? — Ela olhava de mim para a dona Célia sem parar.

— Deixou...

— Não doeu?

— Doeu o quê? — Minha mãe apareceu no batente da porta da sala.

— Mamãe deixou o papai colocar a Val e a Vivi dentro da barriga dela. Valéria não veio da cegonha. — Ela movimentava a cabeça para os lados, enfatizando o que dissera.

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