Capítulo 1 - Arco-Chuva

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    O ataque à torre de transmissão de Gleiwitz, em 31 de agosto de 1939, justificou a invasão de meu país. O terror da guerra forçou minha família a fugir de Gliwice e buscar refúgio nas províncias do norte. À época, eu era apenas um menino de onze anos.

    A dor da desilusão é uma das piores que pode existir, e me lembro com clareza de quando sonhei que meu pai havia voltado para casa. Naquele mundo de cores diluídas, minha mãe destrancou a porta e o encontrou parado ao lado de um vidoeiro-branco. Ele se mostrou inexpressivo e distante, como se não estivesse ciente do próprio retorno; se aproximou dos degraus que conduziam à sala, deu um abraço apertado em minha mãe e disse que voltara de uma missão de assistência humanitária no Japão.

    Fui mortificado pela quebra súbita da delusão pela consciência, que matou a esperança anterior. "Ele não voltará, Serafin.", minha mãe afirmava com desgosto. "Os alemães o pegaram", ela repetia. "Venha pendurar suas meias na corda!", ela chamava, impaciente. Além do mais, Japão...? Não fazia sentido nenhum. O sonho tentou compensar os buracos lógicos criados no decorrer da narrativa com um uso impecável da coesão gramatical: os elementos corretamente unidos deram ao texto um sentido aparente, embora conservassem sua espantosa falta de coerência. Os nazistas jamais fariam missões humanitárias na Ásia ou em qualquer outra região, embora aquela possibilidade louca tivesse deixado em mim um pequeno resíduo de dúvida e esperança. "Se meu pai participasse de uma missão humanitária, suas chances de sobreviver e voltar seriam enormes. Será...?", cheguei a pensar.

    Após a mudança que fizemos para Zalinsko, uma pequena cidade na Pomerânia, era como se o mundo tivesse perdido a cor. Eles tentaram nos tirar até mesmo a linguagem, fazendo-nos engolir o alemão como se nossa cultura não existisse. Bancas de jornais deixavam à mostra os exemplares do Völkischer Beobachter e nele líamos sobre como o terceiro regime havia se tornado uma "grande e única comunidade" e como a Alemanha "procurava não só lutar por sua própria sobrevivência mas também por todas as nações oprimidas do mundo". Felizmente a ocupação não era evidente em Zalinsko, e sendo assim, os restaurantes não faziam distinção étnica e não havia toque de recolher às onze horas.

    É difícil adivinhar o que homens poderosos como Adolf Hitler têm em mente. O que ele desejou ao ter iniciado a segunda guerra? Seria apenas para salvar a economia do país? Pode ser que sim, mas duvido que esse foi o único motivo pelo qual tantos massacres foram cometidos sem a menor ressalva moral. "Hitler quer ser o herdeiro de Napoleão. Quer mandar na Europa como um imperador romano, mas não é nenhum Marco Aurélio. É Calígula e talvez seja Nero", meu avô Stefan costumava dizer.

    É difícil encontrar satisfação quando se está num constante estado de sede, desejando a todo momento exercer a prática do senhorio. O Terceiro Reich fez com que meu pai fosse submetido ao engenho dos escravos de armas; ordenou-o, como o guerreiro capaz que era, a servir a causa da raça pura. "Acho que vou me alistar quando crescer... Vou me alistar, vou lutar...!" — ficava pensando e repensando, tensionando os músculos da coluna e ruborizando as bochechas de tanta revolta. Minha mãe cortou as fantasias de guerra e justiça alimentadas por mim e me trouxe de volta à realidade para ajudá-la nos deveres domésticos.

— Serafin, venha pendurar as roupas!

— Tá bem, mãe. Já vou!

— A última coisa que quero ouvir aqui é um grito, menino! Agorinha você deve fazer as compras para o almoço, então vá se vestir!

    O maior mercado de Zalinsko era também um mercado negro. Céus! Como aquela época foi difícil, para todos nós. O dono do armazém era Erik Pasternak, que acreditem ou não, liderou uma tripulação pirata no passado.

    Depois de ter o olho direito perfurado num acidente, encontrou Cristo e deixou certos hábitos para trás, se limitando apenas ao contrabando de roupas, joias, bebidas, cigarros e alimentos. "Roubo e faço.", afirmava ele diante da menor crítica. Não digo que Pasternak estava certo em seus métodos, mas é um fato inquestionável que o equilíbrio dos preços locais preveniu a fome de muitas famílias. Nenhum de nosso povo o pirata jamais perseguiu, embora os imigrantes tivessem todo o direito de chamá-lo de canalha.

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